quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Viver sob a cruz de Cristo ou carregar a própria cruz? - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta enviada à pastora Dorothee Hock em 03/07/1952.

Prezada senhorita Hock,

[...] Sou da opinião de que a Bíblia foi escrita por pessoas humanas e, por isso, é "mitológica", isto é, antropomórfica. Nela Deus é tornado evidente, mas não visível. Isto seria demais para a nossa insuficiência humana, mesmo que possamos vê-lo em sua forma encarnada. Esta é a μορθή δούλου [forma de servo], depois de realizada a quenose [esvaziamento], portanto também a figura atestada pelo paganismo do κάτοχος [prisioneiro] e do "servo de Deus" do Antigo Testamento, ou do herói fracassado e sofredor como Édipo ou Prometeu. [...]

Cristo instiga a pessoa para dentro do conflito impossível. Ele mesmo se levou exemplarmente a sério e viveu sua vida até o amargo fim, sem atentar para as convenções humanas e em oposição à sua tradição legalista, como um herege perigosíssimo aos olhos dos judeus e como um louco aos olhos de seus familiares. E nós? Nós imitamos a Cristo e esperamos que ele nos livre de nosso próprio destino. Nós seguimos como ovelhinhas o pastor, naturalmente para boas pastagens. Não se fala nada sobre unir o nosso em cima com o embaixo! Ao contrário, Cristo e sua cruz nos libertam de nosso conflito, que nós deixamos simplesmente como está. Nós somos fariseus fiéis à lei e à tradição; enxotamos a heresia e só pensamos na imitatio Christi, mas não na realidade que nos foi imposta, na união dos opostos em nós; preferimos acreditar que Cristo já o fez por nós. Em vez de assumirmos a nós mesmos, isto é, nossa cruz, descarregamos sobre Cristo os nossos conflitos não resolvidos. Nós "nos colocamos debaixo de sua cruz", mas de modo nenhum sob nossa própria. Quem faz esta última parte é um herege, auto-salvador, "psicanalista" e sabe Deus o que mais. A cruz de Cristo foi carregada por ele mesmo, foi sua própria. Colocar-se debaixo da cruz que outro carregou é bem mais fácil do que carregar sua própria cruz sob o escárnio e desprezo dos que nos cercam. No primeiro caso, é permanecer direitinho, dentro da tradição e ser elogiado como sendo piedoso. Isto é farisaísmo bem organizado e extremamente anticristão. Somente é cristão quem vive no sentido e espírito de Cristo. Quem imita a Cristo e tem, por assim dizer, a insolência de querer levar a cruz de Cristo, quando não consegue levar a sua própria, ainda não entendeu, ao meu ver, nem mesmo o ABC da mensagem cristã. 


Será que a sua comunidade entendeu que deve fechar os ouvidos à doutrina tradicional, experimentar as trevas da própria alma e deixar tudo de lado para tornar-se aquilo que todo indivíduo deve ser por vocação pessoal, uma tarefa ou encargo que ninguém pode assumir por nós? pedimos constantemente que "este cálice se afaste" e não nos prejudique. Também Cristo fez isto, mas sem sucesso. Por todas essas razões, a teologia não quer saber de nada da psicologia, porque através dela poderia descobrir sua própria cruz. Mas só queremos falar da cruz de Cristo e da forma admirável como sua morte na cruz aplainou o caminho para nós e resolveu os nossos conflitos. Poderíamos também descobrir, entre outras coisas, que sob todos os aspectos a vida de Cristo é um protótipo de individuação e, por isso, não pode ser ser imitada: neste sentido só podemos viver a nossa própria vida com todas as suas consequências. Isto é duro e, por isso, deve ser evitado. Como se faz isto, mostra-o o seguinte exemplo: Uma pessoa piedosa (isto é, uma ovelha de Cristo), professor de teologia, acusou-me publicamente de que eu, "em flagrante oposição à palavra do Senhor", havia dito que não era ético "continuar sendo" criança. O "cristão" deveria continuar no colo do pai e deixar a odiosa tarefa da individuação para o querido e pequeno Jesus. Assim é falseado, ingenuamente, mas com intenção inconsciente, o sentido do evangelho; e, em vez de nos darmos conta do sentido da vida de Jesus como protótipo, preferimos, numa pretensa concordância com a palavra do Senhor, permanecer infantis e irresponsáveis para conosco mesmos. Este é um exemplo típico daquele διδάσκαλος του Ισραήλ [Mestre de Israel], que não sabe nem mesmo ler o Novo Testamento. Além de mim, ninguém mais protestou, pois isto convinha a todos. Este é apenas um dos muitos exemplos de como se procede enganosamente em toda a religiosidade. E assim o nosso protestantismo tornou-se imperceptivelmente um judaísmo redivivo. 

[...] Deveria ser motivo de alegria que as idéias dogmáticas tivessem base psicológica. Se não a tivessem, ficariam eternamente estranhas e secariam, o que já está acontecendo no protestantismo. Mas é isto que as pessoas querem inconscientemente, porque então não precisam lembrar-se de sua própria cruz, e pode-se falar mais livremente da cruz de Cristo que nos afasta de nossa própria realidade, conforme desejado pelo próprio Deus. Por causa do entrincheirar-se atrás do confessionalismo, permite-se que persista a escândalo infernal de que os assim chamados cristãos não podem entender-se. 

Mesmo que a senhora pense que haja alguma coisa de aproveitável nessas minhas considerações, dificilmente poderia fazer sermão sobre elas para a sua comunidade. Seria uma "cruz" talvez pesada demais. Mas Cristo aceitou uma cruz que lhe custou a vida. É relativamente fácil viver uma verdade digna de louvor, mas é difícil posicionar-se sozinho contra uma coletividade e não ser digno do louvor. Será que sua comunidade tem consciência de que Cristo poderia significar exatamente isto? [...]

Saudações cordiais, 
(C.G. Jung)

Um comentário:

nonoah disse...

Mexe e remexe as entranhas estranhas de mim...