sábado, 27 de dezembro de 2014

Religiosidade como expressão do inconsciente - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Carta de Jung enviada a Piero Cogo em 21/09/1955.

Prezado senhor Cogo,

O senhor não pode imaginar, com base numa reportagem de jornal, o que significa quando eu digo que se pode saber sobre Deus, sem precisar fazer o esforço, muitas vezes bastante infrutífero, para crer. [Jung faz alusão a uma entrevista que havia concedido a uma revista italiana onde dizia que "não precisava crer em Deus, mas sabia de sua existência]. Como o senhor sabe sou psicólogo e me ocupo principalmente com a pesquisa do inconsciente. Neste capítulo entra também, entre outras coisas, a questão religiosa. Se quiser entender-me corretamente, deverá conhecer primeiramente os resultados de minha psicologia. Não posso relatá-los numa carta. Sem um conhecimento profundo da psique humana, estas observações, tiradas do contexto, são totalmente incompreensíveis. Não se pode esperar dos jornalistas que eles se preocupem com os funamentos do nosso pensar. 

Do ponto de vista psicológico, a religião é um fenômeno psíquico que existe de modo irracional, assim como o fato de nossa fisiologia ou anatomia.  Se faltar esta função, a pessoa humana, como indivíduo, estará sem equilíbrio, pois a experiência religiosa é expressão da existência e funcionamento do inconsciente. Não é verdade que possamos ter êxito só com a razão e a vontade. Ao contrário, estamos sempre sob o efeito de forças perturbadoras, que atravessam a razão e a vontade, isto é, são mais fortes do que as últimas duas. Por isso, pessoas altamente racionais, e precisamente estas, sofrem de perturbações que não conseguem administrar com a vontade ou a razão. Desde tempos imemoriais, as pessoas designavam como divino ou demoníaco aquilo que sentiram ou experimentaram como sendo mais forte do que elas. Deus é o mais forte delas. Esta definição psicológica de Deus nada tem a ver com a definição dogmático-cristã, mas descreve a experiência de um Outro, muitas vezes numinoso opositor, que coincide de forma impressionante com a "experiência histórica de Deus". Conheci um professor de filosofia que acreditava poder viver bem só com a razão. Mas "Deus" lhe impôs uma fobia de carcinoma, que ele não conseguia superar e que transformou sua vida num tormento. A desgraça foi que ele não soube ser simples o suficiente para admitir que a fobia era mais forte do que sua razão. Tivesse sido capaz de admitir isso, teria encontrado um caminho para submeter-se racionalmente ao mais forte. Mas, em sua soberba, não entendeu o caminho de sua superstição racionalista, o perigo que o ameaçava e o sentido inerente a esta ameaça. A atuação do divino é sempre uma espécie de dominação, não importa a forma que assuma. Nossa razão é um presente maravilhoso ou uma conquista nada desprezível, mas ela só cobre um aspecto da realidade, que também consiste de dados irracionais. As leis da natureza não são axiomáticas, mas apenas probabilidades estatísticas. Mas a realidade, bem como nossa psique, consiste sobretudo de dados irracionais. Por isso é impossível uma mecanização da vida psíquica. Como os primitivos, também nós estamos entregues a um mundo escuro e às suas imprevisíveis possibilidades. Por isso precisamos da religião, ou seja, de cuidadosa atenção aos acontecimentos (religio é derivada de religere, e não de religare) e não de sofismas, supervalorização do intelecto racional [religere = considerar cuidadosamente, examinar de novo, refletir bem; religare = amarrar de novo, religar]. [...]

Com elevada consideração,
(C.G. Jung)

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