domingo, 16 de novembro de 2014

Psicose e psicologia analítica: de C. G. Jung à Nise da Silveira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A esquizofrenia, anteriormente denominada dementia praecox, teve importância fundamental para que Jung desenvolvesse a psicologia analítica. De acordo com Walter Boechat (2009), “toda teoria psicológica é formulada a partir de um alicerce psicopatológico” (p. 30) e “a esquizofrenia vem a ser a psicopatologia que proporciona o fundamento teórico para a psicologia analítica” (p.31). Os principais conceitos formulados por Jung foram desenvolvidos através de suas observações com pacientes esquizofrênicos. Neste artigo vamos abordar a importância da psicose para o desenvolvimento da psicologia analítica assim como o entendimento teórico que Jung formulou sobre a psicose até chegarmos nas intervenções terapêuticas pioneiras desenvolvidas pela Dra. Nise da Silveira.

No inicio de sua carreira como psiquiatra, Jung trabalhou no Hospital Burghölzli na Suíça, ao lado do renomado Eugen Bleuler. Foram as idéias desenvolvidas por Bleuler, nesta época, que possibilitaram a substituição do conceito de dementia praecox pelo conceito de esquizofrenia. Segundo Boechat (op. cit), o trabalho desenvolvido por Jung no Hospital Burghölzli foi fundamental para que chegasse à ideia da presença de mitologemas (núcleos temáticos universais), através da observação dos delírios e alucinações de seus pacientes. Esses mitologemas apontariam para uma provável origem comum para os, atualmente denominados, sintomas positivos da esquizofrenia. Isso possibilitou que Jung formulasse a hipótese do inconsciente coletivo. O próprio Jung (2007. OC 5) em um de seus livros de grande importância histórica, por ser considerado o marco de sua ruptura com Freud, intitulado atualmente como “Símbolos da transformação”, descreve a alucinação de um de seus pacientes: “O doente vê no sol um membro ereto. Quando balança a cabeça para um e outro lado, o pênis solar também oscila numa e noutra direção, e daí se origina o vento” (p. 89. §151). Tal descrição aparentou não possuir nenhum sentido mais profundo para o jovem psiquiatra naquele momento. Anos mais tarde, quando um texto referente às visões da liturgia de Mitra foi traduzido do grego, Jung observou que a alucinação desse paciente era extraordinariamente semelhante ao que estava descrito no antigo texto. Esse fato foi especialmente importante para que formulasse o conceito de arquétipos, definindo-os como uma “predisposição funcional para produzir idéias iguais ou semelhantes” (p. 91. §154). O paciente que relatou tal alucinação não conhecia o idioma grego e na ocasião em que a relatou, o texto ainda não havia sido traduzido. Esse fato excluía a possível hipótese de que o paciente tinha conhecimento prévio sobre o texto e, quando relatou sua alucinação estava apenas descrevendo algo que já conhecia ou que se trataria de um caso de criptomnésia. Embora esse caso tenha tido importância especial para Jung, foi somente após uma série de outras observações de ocorrências de mitologemas em mitos, contos de fada, sonhos, delírios e fantasias, que Jung chegou a formulação da teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos.

Boechat (op. cit) comenta que Jung, assim como Bleuler, não se contentava com o ponto de vista psiquiátrico, dominante em sua época, que lidava com os sintomas psicóticos apenas sob uma perspectiva descritiva e diagnóstica. Ao invés disso, procurava “sempre o conteúdo simbólico das esquizofrenias” (p. 31). Esse posicionamento possibilitou que Jung fosse além dos preceitos psiquiátricos de sua época (que permanecem atuais) e formulasse uma teoria que não concebia os delírios e alucinações como desprovidos de significação. Para Jung, os sintomas psicóticos manifestam-se de forma totalmente irracional, de impossível compreensão a não ser que se parta de um pressuposto simbólico. Isso significa que exprimem um sentido mais profundo, embora impossível de ser apreendido pela consciência de forma imediata, o que os tornam aparentemente sem sentido.

O conceito de compensação, de extrema relevância para sua teoria, também foi desenvolvido logo no inicio de sua carreira. Boechat (op. cit) afirma que para Jung, “o delírio operaria compensando a atitude da consciência” (p. 32). Posteriormente Jung ampliou essa ideia como um modus operandi do psiquismo de maneira mais geral, fato que se tornou decisivo no entendimento das neuroses e também para a análise dos sonhos. Foi também no período em que trabalhou no Hospital Burghölzli que Jung aplicou extensivamente o teste de associação de palavras de Galton que possibilitou o desenvolvimento do conceito de complexo. O objetivo inicial do teste era desenvolver uma ferramenta objetiva para o diagnóstico diferencial, o que logo se mostrou inviável. Entretanto, Jung, ao lado de seu colaborador Frank Riklin, percebeu que as palavras estímulo utilizadas nos testes "despertavam o que eles chamavam de complexos emocionalmente carregados" (SHAMDASANI, 2005, p. 61).  

Boechat (op. cit) comenta que “a presença de material mitológico nas psicoses fez Jung não apenas propor a teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos, mas questionar o problema da libido exclusivamente sexual” (p. 37). As formulações teóricas propostas por Jung sobre energia psíquica também partem de suas observações com psicóticos. Boechat exemplifica tal afirmação com o tema recorrente em delírios de fim do mundo. “Segundo a teoria junguiana os freqüentes delírios mitológicos de fim de mundo entre os psicóticos refletem o movimento de introversão excessiva da libido psíquica, sua introversão máxima, a perda de contato com o mundo externo” (p. 38). Jung afirma, portanto, que a libido não é revestida de uma qualidade fundamentalmente sexual, ao invés disso trata-se de “energia pura e simples em seu movimento de extroversão e introversão” (p. 38). Posteriormente Jung passaria a diferenciar extroversão e introversão da libido de regressão e progressão da libido. Em seu livro de 1912 ("Símbolos da transformação") ainda é possível notar que Jung utiliza as palavras introversão e regressão como sinônimos do que viria a ser o conceito de regressão da energia psíquica, isto é, o movimento que a energia faz em direção ao inconsciente com a finalidade de promover adaptação do indivíduo em relação a seu próprio mundo interior. Enquanto que os conceitos de extroversão e introversão seriam desenvolvidos posteriormente para a elaboração da teoria dos tipos psicológicos.

Jung nunca descartou a influência de componentes orgânicos na etiologia das psicoses, mas, de acordo com Nise da Silveira (1982), sua abordagem desde o principio reconhecia que não existiria sintoma psicótico algum sem que houvesse uma base psicológica, ou seja, sem significação. Silveira afirma que a gênese da esquizofrenia estaria relacionada com a presença de “intensas e avassaladoras cargas afetivas” (p.95). No que diz respeito à importância do afeto na gênese da esquizofrenia, Jung (1986. OC 3) comenta que o mesmo não aparece, necessariamente, de forma dramática. Ao invés disso pode seguir seu curso de forma silenciosa e invisível ao observador externo. Silveira (1982) comenta que o afeto “no seu caminho oculto vai abrindo fendas, vai tomando posse do consciente, desestruturando a personalidade” (p. 95). A origem da esquizofrenia, portanto, estaria relacionada diretamente à irrupção de conteúdos inconscientes dotados de grande carga afetiva na consciência. 

No que diz respeito ao aspecto mitológico dos sintomas psicóticos, Jung (1971. OC 8/2) comenta que os “complexos [...] assumem, por auto-simplificação, um caráter arcaico e mitológico e, consequentemente, também uma certa numinosidade, como se pode ver, sem dificuldade, nas dissociações esquizofrênicas” (p. 126, § 383). Entendo com isso, que a energia psíquica anteriormente associada aos conteúdos do inconsciente pessoal, em seu movimento de regressão, desloca-se em direção ao núcleo arquetípico dos complexos, desvinculando-se parcialmente dos conteúdos estritamente pessoais. Desse modo evidencia-se a irrupção do inconsciente coletivo na consciência, motivo pelo qual os sintomas psicóticos exprimem, em muitos casos, semelhanças evidentes com temas mitológicos. Silveira (1982) afirma que nas psicoses há mobilização de toda a rede estrutural da psique, que passa a se manifestar de forma caótica na consciência. Ou seja, há ativação de mais de um núcleo energético ao mesmo tempo, “dificultando muito a apreensão das conexões com os estímulos afetivos iniciais” (p. 109). Isso significa que embora um complexo específico possa estar envolvido, de forma mais marcante, na irrupção causadora da fragmentação do eu; será muito difícil vincular as imagens que se manifestam na consciência com esse afeto inicial, já que a “enorme repercussão sobre toda a rede estrutural básica da psique” (p. 109) fará com que diferentes imagens arquetípicas invadam a consciência de forma tumultuada e caótica.

Segundo a teoria junguiana, a força de coesão do complexo do eu tem importância determinante na etiologia da esquizofrenia. De acordo com Jung (ibidem), “o eu é um complexo fortemente estruturado que, por estar fortemente ligado à consciência e à sua continuidade, não pode nem deve ser facilmente alterado, sob pena de enfrentar sérias perturbações patológicas” (p. 163, § 430). A força de coesão do complexo do eu e a violência da irrupção de conteúdos inconscientes na consciência são os dois fatores que determinarão se o eu será capaz de se manter integro em sua unidade (no caso das neuroses) ou se fragmentará desastrosamente (no caso das psicoses) após o assalto do inconsciente. Na neurose, embora a supremacia do eu seja ameaçada pela presença de complexos autônomos, ainda assim há a possibilidade de assimilação desses conteúdos e da ampliação da consciência. Já nas psicoses, ao contrário, não há mais possibilidade de integração do inconsciente à consciência, já que o eu está fragmentado. Ao invés disso, o inconsciente inunda a consciência e, segundo Silveira (1982), “subverte a ordem espacial estruturada pelo consciente” (p. 39)

Nise da Silveira (op. cit) acrescenta um novo elemento teórico para explicar a esquizofrenia, que diz respeito a orientação do sujeito em relação ao espaço e, comenta que Bleuler já chamava atenção para essa questão. A autora afirma que “se o consciente é invadido por conteúdos do inconsciente providos de forte carga energética e efeitos desintegrantes, as coordenadas de orientação no espaço (e no tempo) poderão deslocar-se, criando assim a possibilidade de múltiplas visões de mundo” (p. 32). Para a autora, a consciência estrutura uma ordem espacial através das informações do mundo externo captadas pelos órgãos dos sentidos, e na condição esquizofrênica essas coordenadas mesclam-se com as imagens do inconsciente que caracterizam uma orientação espacial interna. Isso quer dizer que “espaço externo e espaço interno se interpenetram” (p. 36) fazendo com que o indivíduo não seja capaz de distingui-los. Isso ocorre em função do movimento de regressão excessiva da energia psíquica, que “abandona” o mundo externo e manifesta-se de forma intensa no mundo das imagens internas – no inconsciente. 

Silveira (op. cit), de forma sintética, comenta a etiologia da esquizofrenia da seguinte forma:

“Mundo externo hostil, desagregação da família, falta de amor na infância, condições miseráveis de vida, frustrações repetidas, humilhações, opressão da vida instintiva, de aspirações culturais e espirituais, apertando o indivíduo num anel de ferro, provocam intensas emoções e tentativas malogradas de defesa. A psique não consegue fazer face a todos esses ataques, juntos ou separados, e acaba incapaz de preservar sua integridade. Racha-se, cinde-se. As emoções, que não encontraram forma adequada de expressão, introvertem-se, rasgando sulcos subterrâneos até alcançar a estrutura básica da psique” (p. 109)

Em síntese, quando o complexo do eu não é forte o suficiente para suportar a irrupção de conteúdos inconscientes dotados de grande carga afetiva, ocorre um fenômeno caracterizado por sua própria fragmentação, que inviabiliza qualquer possibilidade de síntese entre tese e antítese, isto é, entre consciência e inconsciente. Há com isso, um movimento de regressão excessiva da libido até que atinja as camadas mais profundas da psique, que terá como conseqüência a perda de contato do indivíduo com a realidade externa, pois a libido que anteriormente estava investida no mundo dirige-se para o inconsciente. Em seu movimento de regressão, a libido desloca-se para o núcleo arquetípico dos complexos, e como conseqüência, imagens arcaicas manifestam-se na consciência. Quando isso ocorre, há uma mobilização de toda a rede estrutural da psique, fazendo com que diferentes núcleos energéticos sejam ativados ao mesmo tempo e consequentemente há uma invasão tumultuada de diferentes imagens arquetípicas na consciência. Desse modo, a ordem espacial estruturada pela consciência é subvertida pela inundação dessas imagens e o indivíduo torna-se incapaz de distinguir o espaço externo do espaço interno, ficando assim, como que aprisionado no mundo das imagens do inconsciente.

Embora o eu do esquizofrênico, pela ocorrência de sua fragmentação, seja incapaz de integrar conteúdos inconscientes, é importante ressaltar que isso não equivale a um prognóstico em que não há possibilidade alguma de transformação. John Weir Perry comenta que “o espaço interno onde o indivíduo se debate, por mais inconsciente que possa parecer, é um prodigioso cosmos cheio de potencialidades para o enriquecimento e aprofundamento de sua existência emocional” (PERRY. J. W. Apud SILVEIRA. N. 1982. p. 111). E parece que foi baseado nisso que a Dra. Nise da Silveria não perdeu as esperanças e desenvolver um método terapêutico pioneiro para o tratamento da psicose.

Os trabalhos da Dr. Nise da Silveira com a utilização de materiais plásticos como a pintura e a escultura, demonstraram evidentes evoluções com pacientes esquizofrênicos, incluindo aqueles considerados crônicos, isto é, sem possibilidade de intervenção terapêutica. Segundo a autora, as técnicas utilizadas em seus trabalhos fazem com que conteúdos estranhos e ameaçadores oriundos dos estratos mais profundos do inconsciente se aproximem gradativamente da consciência, pois, as imagens objetivadas através da pintura “tornam-se passíveis de uma forma de trato, mesmo sem que haja nítida tomada de consciência de suas significações profundas” (p.135). No que diz respeito a esse processo, Jung comenta: 

o caos aparentemente incompreensível e incontrolável da situação total é visualizado e objetivado (...). O efeito deste método decorre do fato de que a impressão primeira, caótica ou aterrorizante, é substituída pela pintura que, por assim dizer, a recobre. O tremendum é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência original e seus efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o terror a distância” (JUNG C. G. apud SILVEIRA N. 1982. p. 135).

Tal processo, entretanto, não ocorre de forma linear. Observa-se nos trabalhos dos pacientes do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro (atual IMAS Nise da Silveira no Rio de Janeiro), publicados por Nise da Silveira e mantidos até hoje no acervo do Museu de Imagens do Inconsciente, que o processo acontece em um movimento de circuambulação, onde visíveis progressos são acompanhados de momentos de regressão a estados aparentemente já superados. Entretanto, fica evidente que, ao longo de longas séries de pinturas, figuras ameaçadoras que "aprisionavam" ou atormentavam o indivíduo, são gradativamente despotencializadas e opera-se uma aproximação à realidade do mundo exterior. Tal fato demonstra de maneira clara que, embora seja impossível a integração entre consciência e inconsciente em indivíduos com o eu fragmentado, ainda assim não se esgotam as possibilidades terapêuticas que promovam transformações nítidas e significativas. 


Referências Bibliográficas

BOECHAT, W. Mitopoese da psique: mito e individuação. Petrópolis: Vozes. 2 ª ed. 2009.
JUNG. C. G. , A natureza da psique. OC 8/2. Petrópolis: Vozes. 6ª ed. 1971.
JUNG. C. G. , Psicogênese das doenças mentais. OC 3. Petrópolis: Vozes. 1986.
JUNG. C. G. , Símbolos da transformação. OC 5. Petrópolis: Vozes. 5ª ed. 2007.
SHAMDASANI, S. Jung e a construção da psicologia moderna. São Paulo: Idéias & Letras, 2005.
SILVEIRA. N. , Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra. 2ª ed. 1982.

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