quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Individuação somente na segunda metade da vida? - J. Hillman


Texto retirado do livro "O livro do Puer" de James Hillman.

A psique parece ter seu próprio curso, seu próprio tempo. O senex, assim como o puer, pode aparecer em muitos estágios e fases e influenciar qualquer complexo. O padrão de qualquer vida dividida numa moldura ideal de dois, três, sete ou dez estágios da infância à senilidade parece confirmar a regra da entropia. A vitalidade dada no nascimento diferencia-se, esmorece e finalmente se apaga na morte. Mas a vida psíquica num indivíduo também mostra negentropia, na qual, à medida que ela se torna mais ordenada e menos aleatória, torna-se também mais imprevisível e improvável. Em outros termos, essa negentropia poderia ser chamada liberdade. portanto não podemos encaixar a vida psicológica nas condições históricas ou nas estreitas molduras biológicas de "primeira-metade/segunda-metade". Fazê-lo significaria a indicação inicial de que nós mesmos sucumbimos facilmente ao pensamento enganoso do arquétipo da divisão. 


O próprio Jung recusou-se a caracterizar o processo de individuação tão exclusivamente, não obstante alguns depois dele tenham tentado reduzi-lo para que se encaixe nesse esquema racional mais claro. Se olharmos um pouco à nossa volta veremos com facilidade que o esquema primeira-metade/segunda-metade simplesmente não funciona. Poderia a geração que está para fazer a transição do milênio protelar para "mais tarde" as questões do significado, da religião, da individualidade, enquanto adapta-se às normas sociológicas e biológicas que lhe foram passadas por uma época e que já perderam seu valor inerente? A pessoa jovem hoje em dia encontra-se pressionada a assumir os problemas da segunda-metade da vida. Essa pessoa nasceu numa segunda-metade, no final de um era [...]. Ela não tem apenas seus próprios problemas, mas tem, por necessidade histórica, o problema coletivo da individuação nela depositado. Ela carrega o fardo da história em suas costas e dela espera-se que preencha as expectativas de velha cultura. Assim, ela começa como um puer senilis, mais velho que sua idade e também lutando heroicamente contra sua velharia. O "problema puer" de hoje não é somente neurose coletiva; é a expressão psíquica de necessidade histórica [...]. É particularmente importante lembrar, quando pensamos sobre o "problema puer", que se a energia psíquica não for capaz de fluir através dos canais usuais da tradição, ela recai para dentro e ativa o inconsciente. O inconsciente como "mãe" faz então com que pareça que todo o questionamento e mal-adaptação do jovem seja seu complexo materno pessoal. Mas é reflexo da transição e, como diz Jung, "não de nossa vontade consciente". Reflete "o homem inconsciente dentro de nós que está mudando". Poderia esse homem inconsciente ser protelado até a segunda-metade?

A segunda-metade está conosco desde o começo, assim como está Saturno em nossos mapas natais, assim como o menininho e sua pergunta "porque?", a criança Eros, e o anjo alado estão conosco até o fim. O puer inspira o brotar das coisas; o senex governa a colheita. Mas florescer e colher dão-se intermitentemente durante toda a vida. E, afinal, será que sabemos quem toma conta da morte - o das barbas cinzentas com sua gadanha ou o jovem anjo?

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