quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A sombra coletiva e os linchamentos no Brasil do século XXI - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Não há consenso sobre a etimologia da palavra linchamento, embora seja provável que tenha se originado a partir do comitê para manutenção da ordem do Capitão William Lynch na revolução dos Estados Unidos. Entretanto, a prática de linchamento nos Estados Unidos foi largamente utilizada no período pós-revolução, não para manter a ordem pública, mas para perseguir e assassinar minorias étnicas, como negros e indígenas, por exemplo; e acabou originando grupos racistas violentos como o Ku Klux Klan. Embora a origem da palavra linchamento seja relativamente recente na história, a prática de capturar “criminosos”, ou qualquer “desgraçado” que receba projeções da sombra coletiva, e realizar execuções públicas (com ou sem julgamento), e muitas vezes realizadas pelos próprios cidadãos, é bastante remota. Na antiguidade, era comum a prática da lapidação, apedrejamentos públicos realizados após condenação oficial. A lei mosaica, isto é, atribuída à Moisés, herói Judeu que miticamente introduziu o povo de Israel na Palestina, prevê a morte por apedrejamento em dezoito situações diferentes; como em casos de incesto, idolatria, blasfêmia, bruxaria e até rebeldia de filhos considerados irrecuperáveis pela família. Tal prática ainda hoje persiste de forma institucionalizada em alguns países muçulmanos. 

As execuções públicas na Europa medieval (e mesmo na revolução francesa) tinham um componente bastante semelhante ao linchamento, pois se por um lado os enforcamentos e decapitações serviam de aviso para o resto da população não cometer os mesmos crimes, por outro lado, o escárnio público em relação aos executados transformava-os em bodes expiatórios para a sombra coletiva. O cidadão humilhado publicamente enquanto caminha em direção à execução no centro de uma praça recebe projeções da sombra de seu tempo e de sua cultura, e por esse motivo, o escárnio vai muito além do crime cometido. As reações dos “cidadãos de bem” são desproporcionais por haver uma situação arquetípica constelada; o cordeiro, ou melhor, o bode deve ser ritualisticamente sacrificado para expiar o pecado coletivo do espírito do tempo, que penetra cada individualidade isoladamente e, assim, convoca cada um à responsabilidade. No entanto, a imolação expiatória da sombra coletiva acaba prevenindo que cada cidadão individualmente assuma a própria responsabilidade em relação à redenção do Diabo. Quer dizer, na medida em que a sombra coletiva é projetada no bode expiatório, e este é ritualisticamente sacrificado em um frenesi arquetípico, o reconhecimento e a integração da própria sombra se tornam dispensáveis. Daí podermos concluir que os linchamentos se caracterizam por uma tentativa malograda de integração da sombra coletiva. Tal tentativa de integração, invariavelmente, não obterá sucesso algum, pois enquanto a sombra estiver projetada, jamais poderá ser integrada; e permanecerá somente como encenação mítica. Além disso, cabe aqui ressaltar a importância do indivíduo, tantas vezes observada por Jung, na transformação da cultura; pois a sombra coletiva atravessa cada individualidade isoladamente e convoca todos a darem uma resposta aos problemas de seu tempo. Por esse motivo cada indivíduo é, ele mesmo, o cordeiro a ser imolado para a expiação dos pecados do mundo. Deste modo, a integração da sombra coletiva se dá através de contínuas autoimolações expiatórias, isto é, do reconhecimento e integração da sombra individual, que sempre traz implícita a sombra coletiva. 

A reação desproporcional da população diante de casos que causam “comoção da opinião pública”, isto é, projeção da sombra coletiva, é conhecida desde tempos remotos. Na civilização mais antiga que conhecemos, na Mesopotâmia, havia o código de Hamurabi (Rei da Babilônia); constituído por volta de 1772 a.C. A expressão popular dele originada “olho por olho, dente por dente” é muitas vezes utilizada como justificativa para atos de linchamento na atualidade. Mas mesmo neste texto dos primórdios da civilização é prevista uma pena equivalente e proporcional ao crime, justamente para prevenir a possibilidade de caos e barbárie nos casos em que a sombra coletiva é projetada e a situação arquetípica da imolação expiatória é constelada na cidade. Se lhe arrancarem um dos olhos, arranque outro daquele que te arrancou; mas só um dos olhos. Embora brutal em relação ao direito contemporâneo, mesmo o código de Hamurabi tentava manter a ordem pública a partir da proporcionalidade da pena; tanto pela tendência à vingança pessoal desproporcional, quanto a tendência à reações desproporcionais dos cidadãos diante de atos inaceitáveis pelo tempo em que vivem, isto é, que tocam a sombra coletiva.

Casos de justiça com as próprias mãos ganharam notoriedade recentemente no Brasil e levantaram debates acalorados. Uma série de situações de linchamentos públicos e justiça com as próprias mãos foram noticiados, e pessoas públicas, de um lado incentivaram tais atos, e de outro, os repudiaram. Uma enxurrada de casos foram veiculados pelos meios de comunicação, e não sei se o debate atual acabou incentivando tais práticas ou se elas simplesmente ganharam mais destaque. O fato é que há inúmeros debates importantes que tocam a sombra coletiva do Brasil e passam exatamente pelo problema do linchamento público, como a homofobia, o racismo e o preconceito contra pessoas com transtornos mentais ou moradores de rua. Há alguns dias um jovem homossexual foi assassinato em Goiás pelo simples fato de ser homossexual. Inúmeros outros casos de linchamento e agressões à homossexuais foram noticiados, com imagens que aterrorizam pelo nível da violência. Há alguns anos, um indígena foi incendiado enquanto dormia em uma rua de Brasília por um grupo de jovens; um jovem foi espancado quase até a morte enquanto defendia um morador de rua de um grupo de jovens no Rio de Janeiro; uma mulher foi espancada até a morte, acusada de sequestrar crianças para realizar rituais satânicos em São Paulo... Os casos são numerosos e estes são apenas alguns que me lembro e foram emblemáticos. Estes crimes recentes nos trazem uma reflexão importante, pois em muitos casos se tratavam de desrespeito e violência em relação a grupos minoritários. Não gosto do discurso coitadista em relação às minorias, pois sempre me cheiram à discriminação ao contrário. No entanto é indispensável que a sociedade brasileira reconheça que grupos minoritários, principalmente com história de exclusão, como por exemplo negros e homossexuais, recebem projeções da sombra coletiva com muito mais facilidade. 

No entanto estamos em um momento bastante peculiar, pois o grito dos excluídos se faz ouvir e exige transformações sociais. O racismo, que já foi institucionalizado no Brasil há não muito tempo (no período da escravidão), e por esse motivo, não só aceito amplamente, mas também incentivado; atualmente é repudiado, pelo menos aparentemente. Não quero dar a sensação de que o racismo foi superado no Brasil, muito pelo contrário, está bastante presente, mas no entanto é velado. Aparentemente algo aconteceu, pois o racismo hoje não é como o era há alguns anos, e um caso bastante emblemático que nos ajuda a pensar este assunto é o caso da torcedora do Grêmio flagrada xingando o goleiro do Santos de macaco. Há pouquíssimos anos atrás, é possível que o caso não tivesse nenhuma repercussão na mídia. No entanto, vimos o caso estampando os principais veículos de notícias. A jovem em questão passou a sofrer um linchamento público bastante intenso. Foi ameaçada de morte, estupro, não pode retornar para a própria casa, que foi apedrejada e queimada. Uma reação desproporcional bastante reveladora, pois o escárnio e a comoção pública envolvendo o caso nos mostra que a jovem serviu de recipiente para projeções da sombra coletiva; isto é, tornou-se um bode expiatório para o pecado do brasileiro do século XXI. E neste caso, um pecado bastante específico, o racismo. Isso nos mostra, não que o racismo esteja solucionado, mas ao contrário, mostra que está reprimido ou não é reconhecido, isto é, está velado. A psicologia clínica conhece bem os efeitos devastadores de aspectos não reconhecidos na vida do indivíduo. Sabemos ainda que aquilo que não é reconhecido não pode ser integrado. Ora, e nossa reflexão chegou à conclusão de que os rituais de imolação para expiação dos pecados coletivos são tentativas malogradas de integração da sombra coletiva. Vemos, portanto, uma enantiodromia no que diz respeito ao racismo na sociedade brasileira ao longo dos anos. Pois o preconceito racial que antes integrava plenamente a consciência coletiva e, portanto, era corroborado e incentivado pelo status quo, agora está mergulhado na sombra coletiva; provocando reações desproporcionais como a que estamos presenciando em relação à torcedora do Grêmio. É verdade que tal situação parece ser um momento salutar na direção de uma resolução mais sedimentada do problema do racismo em nossa sociedade, mas por outro lado, nos mostra que qualquer transformação sólida deve passar pelo pleno reconhecimento do racismo em um tempo em que o mesmo encontra-se velado. 

Tendo esta situação em vista, é importante salientar que a projeção da sombra coletiva, embora seja favorecida em grupos minoritários, não ocorre exclusivamente nestes. De modo geral, o problema da sombra coletiva se relaciona diretamente com a consciência coletiva, isto é, aquilo que é considerado certo, aceitável ou desejável por uma coletividade em determinado período histórico. Tal fato, aliado às transformações extremamente rápidas que presenciamos na atualidade acaba transformando grupos bastante tradicionais como por exemplo, grupos cristãos, em receptores de projeções sombrias coletivas. Há ainda a questão das redes sociais que popularizaram linchamentos em uma escala provavelmente sem precedentes. O linchamento virtual é extremamente grave e capaz de trazer grandes prejuízos, e há inclusive casos de suicídios devido esse tipo de linchamento. Enfim, todos os recentes casos de linchamentos públicos, virtuais ou não, nos dão valiosa oportunidade de olhar o lado sombrio da alma brasileira; e desta forma nos permite ir mais fundo e olhar de frente aquilo que não queremos ver, mas que acaba pegando o Brasil pelo pé.

Um comentário:

Unknown disse...

Adorei o artigo. Esclarecedor.
Obrigada.