sábado, 5 de julho de 2014

Resposta à Hillman: sobre herói, ego e Self - Luís Paulo Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Este texto é uma crítica a Hillman, ou melhor, não à Hillman, mas a questões relativas ao ego, ao herói e ao Self na psicologia arquetípica. Considero Hillman um autor que traz excelentes contribuições à psicologia e que particularmente gosto muito. No entanto, há algumas questões que, em minha opinião, merecem algumas ressalvas. Por exemplo, a definição do herói em Hillman não encontra substrato arquetípico que a justifique. O herói, para ele, está associado à usurpação do trono dos deuses pelo ego. No entanto, nos mitos não vemos o herói como alguém que sozinho consegue realizar proezas; e por isso, inversamente ao que Hillman diz, o herói não estaria relacionado ao individualismo – ao indivíduo autocentrado. É necessário voltarmos aos mitos e contos de fada para entendermos o herói, ou como diria Hillman, voltarmos à imaginação. Pois é a alma e sua potência à criação de imagens que serve de substrato fundamental para entendermos não somente o herói, mas todas as pessoas arquetípicas da alma. Pois no mundo imaginal dos mitos e contos de fada, o herói nunca obtém nada sozinho, ao contrário, aquele que tenta realizar suas façanhas sozinho, sem os deuses, sempre fracassa. Os mitos nos mostram que o herói está sempre submetido aos deuses e esse é o motivo de na mitologia grega existir o conceito de hybris, que se refere à característica dos heróis em exceder os limites impostos pelos mesmos. Mas sempre que excedem os limites divinos impostos aos mortais sofrem consequências, que lhes são impostas justamente pelos deuses, e são exatamente estas consequências que acabam botando o herói de frente para seu destino. Isso quer dizer que são também os deuses, e não somente o herói solitário, os responsáveis pelos feitos heróicos. O herói está sempre submetido aos deuses e nunca depende apenas de si mesmo. Édipo aprendeu isso com enorme pesar!


O herói, portanto, não se refere a um ego autocentrado, mas ao contrário refere-se a um ego que necessita se orientar ao Self, como diria Jung. Ou, como diria Hillman, uma alma que deve se livrar da identificação com o ego. É importante voltarmos aos mitos para compreender isso. Por exemplo, Penteu, um individualista nato, cheio de si, incapaz de escutar qualquer coisa em desacordo com o que pensava. Não ouviu Dioniso, não ouviu Cadmo, não ouviu Tirésias e não ouviu a mensagem terrificante do raio que incendiou sua casa. Sem ouvir nada disso, mas somente centrado em si mesmo – orientado psiquicamente ao eu – tenta tirar sua mãe e tias do êxtase dionisíaco e se recusa a prestar honrarias ao deus, contra todos os avisos. Acaba desmembrado por elas. Édipo é outro exemplo muito bom, pois inicialmente, em Édipo Rei de Sófocles, vemos um Édipo autocentrado, quer dizer, egoicamente centrado, que se vangloria de ter matado a Esfinge unicamente com a força do próprio intelecto, "sem ajuda dos pássaros"; no entanto foi exatamente esse feito autocentrado (hybris) que causou sua ruína, pois foi justamente a morte da Esfinge que o levou à cama de sua mãe. Em Édipo em Colono, vemos uma mudança radical em Édipo, que finalmente passa a ouvir aos deuses, que inclusive lhe comunicam seu destino, e segue sem medo para a própria morte por determinação divina. Ora, vemos inicialmente um herói autocentrado que só consegue a própria ruína, e somente com a mudança radical de orientação do ego para os deuses, é que Édipo finalmente se transforma de fonte de desgraça (causador da praga de Tebas) em fonte de benção à Atenas. Outro exemplo é o herói Perseu, um herói que poderia facilmente ser enquadrado no rótulo defendido por Hillman de autocentrado. No entanto, este herói aceita todas as ajudas sobrenaturais que recebe: o escudo de Atená, o elmo de Hades, a espada de Hermes e as sandálias aladas das Ninfas. Sem isso jamais teria matado a Medusa, que a propósito o ajuda (sua cabeça decaptada) a vencer posteriormente o exercito do pai de Andrômeda que tenta o enganar. Perseu é autocentrado? A resposta é um grande não. Perseu ouve as vozes da multidão de pessoas arquetípicas e somente graças a isso consegue ter êxito. Moisés, da Torá judaica, não segue as próprias leis, mas as leis de Javé. Assim como Jesus não se define como revolucionário solitário, mas como filho de Deus que cumpre um destino divino (e não um destino criado pelo ego). O herói definitivamente não é alguém autocentrado, muito pelo contrário, como os mitos nos mostram exaustivamente. 

A relação de heroico com egoico estabelecida por Hillman é demasiadamente afastada dos fundamentos arquetípicos das inúmeras imagens de heróis que povoam a imaginação da humanidade desde tempos remotos. Jung não relacionava o arquétipo do herói com o ego, mas com a libido. O núcleo arquetípico do complexo do ego, para Jung era o Self, conceito problematizado posteriormente por Hillman. Para Jung, o herói, o movimento da libido, estaria relacionado à aglutinação do complexo do ego, mas não estaria na raiz do ego. Além disso, estaria associado a qualquer transformação da consciência que envolvesse o confronto com o inconsciente. Já para Hillman, o núcleo arquetípico do ego seria o arquétipo do herói. Penso que o pensamento de Jung, neste aspecto, está mais de acordo com as imagens dos mitos e contos de fadas do que o proposto por Hillman. No entanto, Hillman chama atenção para uma questão importante. A relação do heroico com o egoico não é uma opinião sem fundamento proposta por ele, mas refere-se a um fenômeno contemporâneo que destituiu o herói de qualquer apoio divino para a realização de seus feitos. Despovoou, por assim dizer, o indivíduo de todas as outras pessoas arquetípicas à custa de um ego que pretende ser Self. Ora, os heróis dos quadrinhos (mas não todos), os heróis de guerra e enfim o considerado heroico atualmente é justamente aquilo que Hillman se refere, quer dizer, alguém que não depende de ninguém a não ser de si próprio. O Superman e aqueles que ganharam medalhas de honra ao mérito por feitos heroicos em guerras são indivíduos que assumiram a responsabilidade de uma causa coletiva para si próprios, e somente para si. Isso é um fenômeno contemporâneo que merece atenção. 

Embora não seja minha intenção tentar entender tal fenômeno no presente texto, acredito que possa estar ligado a como nossa cultura acabou por se estruturar em torno do culto ao ego, da destituição dos deuses da ordem cósmica universal, da ideia de mérito, de evolução, etc. A imagem do herói aparece no imaginário contemporâneo ocidental de forma anômala, onde o homem destituiu os deuses do Olimpo e sentou no trono de Zeus. Isso é uma imagem, aparentemente sem precedentes na história da humanidade. E constitui um problema bastante atual que merece um olhar mais cuidadoso. É como se o herói estivesse em constante hybris, sem esperar nenhuma consequência. O individualismo contemporâneo me parece ser exatamente isto, uma hybris coletiva constante. Mas os deuses estão sempre cobrando seu tributo, independente do homem estar ou não se dando conta disso. Hillman nos chama atenção para isso quando afirma que “as multiplicidades da alma necessitam de um receptáculo arquetípico adequado, ou – como anjos caídos num labirinto – elas vagueiam no caos”. No entanto, considero um erro associar o arquétipo do herói, que conhecemos pelo menos desde Gilgamesh da Mesopotâmia, unicamente ao imaginário individualista contemporâneo ocidental. Pelo contrário, acho que todo o trajeto histórico do herói em suas mais diversas formas de manifestação, servem de substrato para problematizarmos o herói do mundo contemporâneo e, portanto, a alma na atualidade.

Enfim, considero equivocada a depreciação do herói feita por Hillman por um lado, e por outro, considero que aponta para um fenômeno da cultura ocidental contemporânea que exige maior reflexão. Na tentativa de estruturar sua psicologia politeísta, Hillman destitui o homem do trono que usurpou no Olimpo, e restitui o lugar devido aos deuses; até aqui tudo bem. No entanto, uma psicologia politeísta, segundo Hillman, incompatível com o conceito de Self e que pretender não organizar hierarquicamente os deuses, já que cada um deve receber o tributo que lhe é devido; não deveria repudiar o ego, o self ou o herói, pois estes também exigem seus tributos. Ignorar isto é cometer o mesmo erro que destituiu do céu os deuses. Seria destituir o homem da terra, e habitá-la unicamente com imagens espelhadas e fantasmagóricas dos deuses. Concordo com Hillman que Zeus não é uma espécie de Self, pois é limitado por todos os outros deuses. Mas o Olimpo por outro lado aparece como um símbolo da totalidade, onde todos os deuses encontram sua residência. 

Como não considerar o Self? Ou melhor, como não considerar que há um algo que tende a reunir tudo? Não fosse esta tendência à reunião, não haveria os mitos; e os arquétipos seriam indistinguíveis uns dos outros. Pois o que permite que sejam discerníveis é exatamente a reunião de determinadas características, de mitemas, em torno de um motivo específico, um mitologema, formando assim uma espécie de totalidade. Aí está o Self, não como uma divindade exclusiva e egoísta, mas como aquilo que aglutina ordem a partir do caos e confere inclusive a individualidade dos deuses; sem ele Hillman jamais poderia ter cunhado o conceito de “pessoas arquetípicas”. Não concordo que a psicologia de Jung seja monoteísta graças ao conceito de Self, como afirma Hillman. Pois Jung sempre levou em conta os arquétipos do inconsciente coletivo, ou seja, nunca pretendeu exilar os anjos do céu em nome de uma divindade única e egoísta; e sua experiência pessoal relatada no Livro Vermelho mostra de forma inequívoca que considerava de extrema importância dar voz a todas as pessoas arquetípicas que se manifestassem. Penso ser necessário superar o dualismo, monoteísmo x politeísmo para definir a psicologia junguiana. Pois a psicologia de Jung, paradoxalmente, é politeísta, ao mesmo tempo em que é monoteísta. Aqui concordo com Hillman de que tudo deve ter seu lugar; Afrodite e Ares, mas ao contrário de Hillman, também considero importante dar lugar ao Uno e ao homem.

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