terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Tormento da oscilação na eternidade - O Sátiro

Fazendo esforço para memorizar a receita que o Sátiro acabara de lhe dizer, Pedro ficou um tempo em silêncio, para tentar absorver cada palavra que ouviu. O Sátrio lentamente se aproximou. Caminhava tão silenciosamente que não era possível ouvir nem ao menos o barulho das folhas em que pisava. O estranho ser com chifres levantou o dedo e tocou levemente a testa do jovem. Subitamente Pedro sentiu-se tonto, o chão em seus pés começou a girar tão rápido que a floresta virou um borrão em seu campo visual. Sentiu-se como se estivesse no centro de um furacão. Mas ali no centro permanecia imóvel. Gradualmente o chão deixou de girar. Pedro sentiu-se velho e assumiu uma postura encurvada. Olhou para as próprias mãos e percebeu que estavam muito enrugadas. A floresta havia desaparecido e percebeu que estava em sua casa. Havia poeira e teia de aranha em todos os cantos. Tudo estava sujo e bagunçado. O jovem, que agora estava velho, pensou em arrumar toda aquela bagunça, mas sentiu uma preguiça tão forte que parecia penetrar-lhe em cada músculo de seu corpo. Ficou ali onde estava, incapaz de dar um passo à frente. Seu estomago roncou em um estrondo, e percebeu que estava faminto. Dali de onde estava podia ver alguns vegetais sobre a mesa da cozinha, mas tudo que conseguiu fazer foi sentar-se, sem forças, na cadeira de balanço que estava logo atrás de si. Estranhamente a cadeira começou a balançar sozinha, e mesmo com as tentativas de Pedro em parar seu movimento, continuava balançando ininterruptamente para frente e para trás. Sempre que a cadeira ia para frente, sentia-se encorajado a levantar para preparar algo que matasse sua fome; mas sempre que a cadeira ia pra traz sentia como se uma força sobrenatural tivesse roubado toda sua energia e ficava impossibilitado de se levantar. Subitamente, Pedro percebeu que havia um homem com roupas e chapéu quadriculados, como um tabuleiro de xadrez, no canto da sala o observando. De seu chapéu pendiam três pontas com um guizo em cada extremidade. Era uma espécie de bobo, que não parava de rir observando Pedro oscilando, sem alternativa, para frente e para traz na cadeira de balanço. Pedro sabia que conhecia aquele homem de algum lugar, mas não era capaz de se lembrar de onde. Sua risada eufórica dava a impressão de que era um lunático, e suas roupas não ajudavam a dar a entender o contrário. Mas ele parecia ser a menor de suas preocupações, pois sua fome era profunda e suas forças haviam deixado seu corpo. Pedro, o jovem velho, perdeu as contas de quantas vezes a cadeira balançou para frente a pra trás. Algumas centenas, ou talvez milhares. Permaneceu ali, alternando desesperado entre a vontade de se levantar e a constatação amarga de que não tinha forças para tal. O tempo passou. Primeiro dias, depois anos, quem sabe décadas. Não era mais capaz de dizer. Pedro estava tão magro que ninguém que o conhecesse seria capaz de reconhecê-lo. Sua pele parecia estar aderida a seus ossos, como se não houvesse músculo algum entre eles. Seu tormento não tinha fim. O lunático com roupa de bobo permaneceu durante todo esse tempo no canto da sala, observando e rindo como louco de Pedro, que tinha a estranha sensação de que ele deveria estar por trás daquele tormento sem fim. Quando o tempo se transformou em eternidade, desejou morrer para que seu tormento pudesse acabar. Mas estranhamente, apesar de não comer durante toda a eternidade e estando tão fraco que mal podia se mexer, o sopro de vida não o deixava definitivamente. Em certo momento Pedro se perguntou se o motivo de não morrer, apesar disso tudo, seria pelo fato de já estar morto. Foi exatamente no momento em que Pedro se questionou sobre isso, que o louco com roupas xadrez interrompeu sua risada perpétua. 

Famintos insaciáveis - O Sátiro


 – Não é prudente pisar nas sombras de seus amigos. Esteja sempre atento à posição do sol no céu para que cuidadosamente desvie das sombras deles que são projetadas no chão. Só pise na sombra de algum deles, se gentilmente te convidarem para se aproximar. E ainda assim, pise cuidadosamente somente com o pé direito. Se for feito corretamente, isso pode funcionar como o fogo de um forno que cozinha um peixe saboroso para ambos comerem. Esse é um alimento que nutre! Mas, embora você tome todo cuidado para não pisar na sombra deles, não poderá evitar que eles eventualmente pisem na sua. E quando isso acontecer esteja atento! Pois terá a chance de se sentar mais perto do fogo deste forno e suas mãos poderão alcançar o peixe que está sendo assado. Isso acontecerá muitas vezes em sua vida, mas se não estiver atento e perder essas oportunidades, pode ficar tão distante do fogo a ponto de congelar de frio; e o peixe que poderia matar sua fome estará tão distante que não sentirá nem o cheiro. Muitas pessoas estão mortas de fome apesar de estarem tão gordas quanto hipopótamos! Comem somente coisas cruas, sem gosto ou nutrientes. Engordam, é verdade, mas morrem de fome e permanecem perambulando famintos, comendo qualquer porcaria, mas sem nunca se sentirem saciados. Imagino que não queira ser como esses coitados que morrem de fome e vivem mortos em busca de algum alimento que os saciem, comendo de tudo mas sem nunca encontrar algo que realmente mate suas fomes. Há muitos desses por aí, e para se tornar um deles basta estar desatento. Estar atento para aquilo que o nutre verdadeiramente é o segredo pra não cair na desgraça que eles caíram. Mas há as miragens conforme já lhe disse. Estar cuidadosamente atento, com o foco naquilo que é significativo te mostrará o caminho da vida viva.

sábado, 27 de dezembro de 2014

O pai devorador - Murray Stein


Texto de Murray Stein. 
Obs: Não tenho certeza sobre a fonte, por isso este texto está sem referência bibliográfica.

A mãe devoradora tornou-se uma realidade arquetípica bastante conhecida no mundo da psicologia profunda. Jung descreve a personalidade devorada pela mãe em seu aspecto neurótico (CW 9,11 § § 20-22); suas formas extremas aparecem como psicoses endógenas, a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva. Já o arquétipo do pai devorador não é tão familiar. Nesse caso, poderíamos dizer que sua forma extrema seria uma psicose social.

Se o arquétipo paterno tem como um polo o pai guardião de seus filhos e poderosa fortaleza contra as ameaças do mundo exterior, tem como outro o pai devorador, na sua rígida insistência quanto a formas convencionais de pensamento, de sentimento e comportamento. O reflexo fenomenológico desse lado negativo do arquétipo do pai é uma consciência vinculada e submersa em convenções e hábitos, e um respeito ao dever definido pelas normas coletivas prevalecentes. Um dilúvio gástrico de valores, padrões de pensamento, gostos, disposições, atitudes e opiniões da cultura predominante dissolve qualquer traço de experiência individual e de reação espontânea.

A história “A Morte de Ivan Ilitch”, de Leon Tolstoi, constitui um retrato magistral de uma consciência devorada pelo pai. Tolstoi apresenta Ivan como :

"filho de um oficial cuja carreira em Petersburgo, através de vários ministérios e departamentos, foi do tipo que conduz um homem a posições de que, devido ao seu longo tempo de serviço e ao cargo oficial a que chegou, não pode ser dispensado, embora seja óbvio que não sirva para executar nenhum serviço útil, e para quem, em conseqüência, são especialmente criados postos que, embora fictícios, fazem jus a salários nada fictícios, de seis a dez mil rublos, nos quais permanece até a idade avançada". 

(Leon Tolstoi, The Cossacks, Penguin Classics, 1960, pág. 110 ). 

Na história, não se faz menção à mãe de Ivan. Seu pai é claramente uma representação do Senex na forma do velho rei que deveria morrer mas continua a reinar obstinadamente. 

Religiosidade como expressão do inconsciente - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Carta de Jung enviada a Piero Cogo em 21/09/1955.

Prezado senhor Cogo,

O senhor não pode imaginar, com base numa reportagem de jornal, o que significa quando eu digo que se pode saber sobre Deus, sem precisar fazer o esforço, muitas vezes bastante infrutífero, para crer. [Jung faz alusão a uma entrevista que havia concedido a uma revista italiana onde dizia que "não precisava crer em Deus, mas sabia de sua existência]. Como o senhor sabe sou psicólogo e me ocupo principalmente com a pesquisa do inconsciente. Neste capítulo entra também, entre outras coisas, a questão religiosa. Se quiser entender-me corretamente, deverá conhecer primeiramente os resultados de minha psicologia. Não posso relatá-los numa carta. Sem um conhecimento profundo da psique humana, estas observações, tiradas do contexto, são totalmente incompreensíveis. Não se pode esperar dos jornalistas que eles se preocupem com os funamentos do nosso pensar. 

Do ponto de vista psicológico, a religião é um fenômeno psíquico que existe de modo irracional, assim como o fato de nossa fisiologia ou anatomia.  Se faltar esta função, a pessoa humana, como indivíduo, estará sem equilíbrio, pois a experiência religiosa é expressão da existência e funcionamento do inconsciente. Não é verdade que possamos ter êxito só com a razão e a vontade. Ao contrário, estamos sempre sob o efeito de forças perturbadoras, que atravessam a razão e a vontade, isto é, são mais fortes do que as últimas duas. Por isso, pessoas altamente racionais, e precisamente estas, sofrem de perturbações que não conseguem administrar com a vontade ou a razão. Desde tempos imemoriais, as pessoas designavam como divino ou demoníaco aquilo que sentiram ou experimentaram como sendo mais forte do que elas. Deus é o mais forte delas. Esta definição psicológica de Deus nada tem a ver com a definição dogmático-cristã, mas descreve a experiência de um Outro, muitas vezes numinoso opositor, que coincide de forma impressionante com a "experiência histórica de Deus". Conheci um professor de filosofia que acreditava poder viver bem só com a razão. Mas "Deus" lhe impôs uma fobia de carcinoma, que ele não conseguia superar e que transformou sua vida num tormento. A desgraça foi que ele não soube ser simples o suficiente para admitir que a fobia era mais forte do que sua razão. Tivesse sido capaz de admitir isso, teria encontrado um caminho para submeter-se racionalmente ao mais forte. Mas, em sua soberba, não entendeu o caminho de sua superstição racionalista, o perigo que o ameaçava e o sentido inerente a esta ameaça. A atuação do divino é sempre uma espécie de dominação, não importa a forma que assuma. Nossa razão é um presente maravilhoso ou uma conquista nada desprezível, mas ela só cobre um aspecto da realidade, que também consiste de dados irracionais. As leis da natureza não são axiomáticas, mas apenas probabilidades estatísticas. Mas a realidade, bem como nossa psique, consiste sobretudo de dados irracionais. Por isso é impossível uma mecanização da vida psíquica. Como os primitivos, também nós estamos entregues a um mundo escuro e às suas imprevisíveis possibilidades. Por isso precisamos da religião, ou seja, de cuidadosa atenção aos acontecimentos (religio é derivada de religere, e não de religare) e não de sofismas, supervalorização do intelecto racional [religere = considerar cuidadosamente, examinar de novo, refletir bem; religare = amarrar de novo, religar]. [...]

Com elevada consideração,
(C.G. Jung)

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O inconsciente coletivo - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta de Jung enviada ao Pastor Max Frischknecht em 08/02/1946.

Prezado Pastor, 

[...] Li com interesse e prazer seu estudo cuidadoso sobre as visões aterradoras do beato Bruder Klaus e agradeço de coração. Concordo plenamente com seus comentários até o ponto em que levanta a questão sobre o fundamento transcendental da visão. Sua alternativa é "Deus metafísico" ou "o próprio inconsciente" do Bruder Klaus. Este é o caput draconis [cabeça do dragão]! Inadvertida e sub-repticiamente o senhor me imputa uma teoria que venho combatendo há dezenas de anos, isto é, a teoria de Freud. Como se sabe, Freud deriva a "ilusão" religiosa do "próprio" inconsciente do indivíduo, portanto do inconsciente pessoal. Há razões empíricas que contradizem este ponto de vista. Eu as reuni na hipótese do chamado inconsciente coletivo. O inconsciente pessoal caracteriza-se pelo fato de que seus conteúdos são formados pessoalmente e são ao mesmo tempo aquisições individuais que variam de pessoa para pessoa, tendo cada qual o seu "próprio" inconsciente. O inconsciente coletivo, porém, apresenta conteúdos que são formados pessoalmente apenas em grau ínfimo e, no essencial, em grau nenhum; não são aquisições individuais, mas são essencialmente os mesmos em toda parte e não variam de pessoa para pessoa. Este inconsciente é como o ar que é sempre o mesmo em toda parte, que é respirado por todos e a ninguém pertence. Os conteúdos (chamados arquetípicos) são condições prévias ou esquemas da constituição psíquica geral. Eles têm um esse in potentia [ser em potência] e in actu [no ato], mas não in re [como coisa], pois como res [coisas] já não são o que eram, mas tornaram-se conteúdos psíquicos. São em si imperceptíveis, não representáveis (pois antecedem toda representação), em toda parte e "eternamente" os mesmos. Por isso só existe um inconsciente coletivo que é idêntico a si mesmo em toda parte, do qual todo o psíquico recebe sua forma antes de ser personalizado, modificado, assimilado, etc. por influências externas.

Para tornar mais compreensível este conceito um tanto difícil, gostaria de trazer um paralelo da mineralogia, isto é, a chamada estrutura do cristal. Esta estrutura representa o sistema axial do cristal. Na solução-mãe ela é invisível, como se não existisse, mas ela existe, agregando-se primeiramente os íons ao redor dos pontos axiais (ideais) de intersecção e, depois, as moléculas. Há somente uma estrutura do cristal para milhões de cristais da mesma composição química. Nenhum cristal individual pode falar de sua estrutura, pois ela é a única e a mesma precondição de todos (e nenhum deles a realiza perfeitamente!). Ela é a mesma em toda parte e "eternamente".

domingo, 21 de dezembro de 2014

Relatividade do livre arbítrio - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Cartas de Jung enviada ao Reverendo S.C.V. Bownam em 10/12/1953.

Dear Sir,

O seu problema do liberum arbitrium [livre arbítrio] tem obviamente vários aspectos, que eu não saberia como abordar nos limites de uma carta. Só posso dizer que, até onde a consciência chega, a vontade é entendida como sendo livre, isto é, que o sentimento de liberdade acompanha nossas decisões, não importando se elas são realmente livres ou não. Esta última questão não pode ser decidida empiricamente. Onde a pessoa não está consciente aí obviamente não pode haver liberdade. Através da análise do inconsciente amplia-se o horizonte da consciência a cresce automaticamente o grau de liberdade. Uma consciência plena significaria uma liberdade e responsabilidade igualmente plenas. Se os conteúdos inconscientes que se aproximam da esfera da consciência não foram analisados e integrados, então a esfera da liberdade fica diminuída pelo fato de tais conteúdos serem ativados e ganharem mais influência compulsiva sobre a consciência do que se fossem totalmente inconscientes. Não creio que haja maiores dificuldades nesta linha de abordagem. Parece-me que a verdadeira dificuldade começa com o problema de como lidar com os conteúdos integrados, que antes eram inconscientes. Isto, porém, não pode ser tratado numa carta.

Esperando vê-lo na primavera, sou
Yours sincerely,
(C.G. Jung)

sábado, 20 de dezembro de 2014

Regressão e fascinação arquetípica na neurose e na psicose - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol II.
Trecho de carta de Jung enviada ao Dr. John W. Perry em 08/02/1954.

Dear Perry, 

[...] Em primeiro lugar, a regressão que ocorre no processo de renascimento ou integração é em si um fenômeno normal, podendo ser observado também em pessoas que não sofrem de nenhuma psicopatia. No caso de uma constituição esquizóide, observa-se quase o mesmo, apenas com a diferença de que há uma tendência marcante do paciente ficar preso ao material arquetípico. Neste caso, repete-se sempre de novo o processo de renascimento. Esta é a razão por que a esquizofrenia clássica desenvolve condições estereotipadas. Até certo ponto, a experiência é a mesma com indivíduos neuróticos. Isto é assim porque o material arquetípico tem uma estranha influência fascinante que tenta assimilar a pessoa por inteiro. Ela procura identificar-se com alguma das imagens arquetípicas que são características do processo do renascimento. É por isso que os casos esquizofrênicos apresentam um comportamento de certo modo bem infantil. Pode-se observar quase o mesmo em pacientes neuróticos; desenvolvem inflações por conta da identificação com imagens arquetípicas ou desenvolvem um comportamento infantil por conta da identidade com a criança divina. Em todos estes casos a dificuldade real será libertar os pacientes da fascinação (através do material arquetípico). Os casos esquizóides bem como os casos neuróticos repetem muitas vezes sua história pessoal da infância. Isto é um sinal favorável na medida em que é uma tentativa de voltar a crescer no mundo, como eles já o fizeram antes, ou seja, em sua infância. (...)


Via de regra não é preciso levar os pacientes a que revivam suas reminiscências infantis; geralmente eles o fazem por si mesmos, pois é um mecanismo inevitável e, como eu disse, uma tentativa teleológica de crescer novamente. Se observar apenas o material que os pacientes produzem, verá que eles entrarão forçosamente em suas reminiscências, costumes e maneiras infantis e que projetarão especialmente as imagens dos pais. Se houver uma transferência, o senhor ficará envolvido e integrado na atmosfera familiar do paciente. [...] Quando deixamos que o inconsciente siga o seu caminho natural, então podemos estar certos de que virá à tona tudo o que o paciente precisa saber; também podemos estar certos de que tudo o que tiramos do paciente por insistência em bases teóricas não será integrado na personalidade do paciente, ao menos não como valor positivo, mas no máximo como resistência duradoura. Nunca lhe ocorreu que em minha análise pouco se fala de "resistência" [...]?

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Desmistificando os arquétipos e o inconsciente coletivo - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol II. 
Carta de Jung enviada ao Professor G.A. van den Bergh von Eysinga.

Dear Sir, 

Antes de mais nada, não sou filósofo e meus conceitos não são filosóficos e abstratos, mas empíricos [...]. O conceito em geral mal compreendido é o de arquétipo, que cobre certos fatos biológicos, mas que não é uma idéia hipostasiada. O "arquétipo" é praticamente sinônimo do conceito biológico de "padrão comportamental" (behaviour pattern). Mas como este designa principalmente fenômenos externos, escolhi o termo "arquétipo" para o "padrão psíquico" (psychic pattern). Não sabemos se o pássaro tecelão contempla uma imagem interna ao seguir um modelo imemorial e hereditário na construção de seu ninho; mas, pelo que sabemos da experiência, nenhum pássaro tecelão inventou seu ninho. É como se a imagem da construção do ninho tivesse nascido com o pássaro. 

Como nenhum animal nasce sem os seus padrões instintivos, não existe razão para supormos que o ser humano tenha nascido sem suas formas específicas de reação fisiológicas e psicológicas. No mundo inteiro os animais da mesma espécie apresentam os mesmos fenômenos instintivos, assim também o ser humano apresenta as mesmas estruturas arquetípicas, onde quer que ele viva. Não há necessidade de ensinar ao animal procedimentos instintivos; também o ser humano possui suas formas psíquicas básicas, que ele repete espontaneamente, sem tê-las aprendido nunca. Na medida em que possui a consciência e a capacidade da introspecção, também recebe a possibilidade de perceber suas estruturas instintivas na forma de imagens arquetípicas. Como é de se esperar, estas representações são praticamente universais (cf., por exemplo, a identidade notável das estruturas xamanistas). Também pode acontecer que surjam de novo e espontaneamente tradições na psique da pessoa, que haviam sido totalmente esquecidas. Este fato atesta a autonomia dos arquétipos. 

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Deus e Imagem de Deus: Psicologia e religião - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta de Jung enviada ao Pastor W. Niederer em 01/01/1953.

Prezado Pastor!

[...] Meu interesse estava, em primeiro lugar, em entender eu mesmo o sentido da mensagem cristã; em segundo lugar, transmitir este entendimento aos meus pacientes que sentiam uma necessidade religiosa; e, em terceiro lugar, salvar o sentido dos símbolos cristãos em geral.

[...] Critico apenas nossas concepções de Deus. Eu não sei o que Deus é em si. Em minha experiência só há fenômenos psíquicos que, em última análise, são de origem desconhecida, pois a psique em si é irremediavelmente inconsciente. Todos os meus críticos ignoram os limites epistemológicos que eu respeito claramente. Assim como tudo o que percebemos é fenômeno psíquico e, portanto, secundário, o mesmo acontece com toda a experiência interior. Nós deveríamos ser realmente modestos e não imaginar que podemos dizer qualquer coisa de Deus em si. Defrontamo-nos na verdade com enigmas terríveis. 

Devemos estar conscientes de que existe um inconsciente. Eu não ouso formular o que o teólogo faz, mas o que eu faço é tentar tornar as pessoas suficientemente conscientes para que saibam onde podem querer e onde se confrontam com a força da um não-eu. Na medida em que posso observar os efeitos desse não-eu, também é possível para mim fazer afirmações sobre ele. Não tenho nenhum meio cognitivo real (apenas decisões arbitrárias) que me permitem distinguir o não-eu em si incognoscível daquilo que os homens vêm chamando de Deus (ou deuses, etc.) desde tempos imemoriais. Assim, por exemplo, parece-me que o supremo arquétipo do si-mesmo tem um simbolismo idêntico ao da imagem tradicional de Deus. Para mim é incompreensível como se poderia entender tudo isso sem o conhecimento da psicologia do inconsciente ou sem o autoconhecimento. Na psicologia só se entende aquilo que se experimentou ou vivenciou. 

O arquétipo é a última coisa que posso entender do mundo interior. Com isso não se nega nada do que ainda poderia estar ali dentro.


quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Viver sob a cruz de Cristo ou carregar a própria cruz? - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta enviada à pastora Dorothee Hock em 03/07/1952.

Prezada senhorita Hock,

[...] Sou da opinião de que a Bíblia foi escrita por pessoas humanas e, por isso, é "mitológica", isto é, antropomórfica. Nela Deus é tornado evidente, mas não visível. Isto seria demais para a nossa insuficiência humana, mesmo que possamos vê-lo em sua forma encarnada. Esta é a μορθή δούλου [forma de servo], depois de realizada a quenose [esvaziamento], portanto também a figura atestada pelo paganismo do κάτοχος [prisioneiro] e do "servo de Deus" do Antigo Testamento, ou do herói fracassado e sofredor como Édipo ou Prometeu. [...]

Cristo instiga a pessoa para dentro do conflito impossível. Ele mesmo se levou exemplarmente a sério e viveu sua vida até o amargo fim, sem atentar para as convenções humanas e em oposição à sua tradição legalista, como um herege perigosíssimo aos olhos dos judeus e como um louco aos olhos de seus familiares. E nós? Nós imitamos a Cristo e esperamos que ele nos livre de nosso próprio destino. Nós seguimos como ovelhinhas o pastor, naturalmente para boas pastagens. Não se fala nada sobre unir o nosso em cima com o embaixo! Ao contrário, Cristo e sua cruz nos libertam de nosso conflito, que nós deixamos simplesmente como está. Nós somos fariseus fiéis à lei e à tradição; enxotamos a heresia e só pensamos na imitatio Christi, mas não na realidade que nos foi imposta, na união dos opostos em nós; preferimos acreditar que Cristo já o fez por nós. Em vez de assumirmos a nós mesmos, isto é, nossa cruz, descarregamos sobre Cristo os nossos conflitos não resolvidos. Nós "nos colocamos debaixo de sua cruz", mas de modo nenhum sob nossa própria. Quem faz esta última parte é um herege, auto-salvador, "psicanalista" e sabe Deus o que mais. A cruz de Cristo foi carregada por ele mesmo, foi sua própria. Colocar-se debaixo da cruz que outro carregou é bem mais fácil do que carregar sua própria cruz sob o escárnio e desprezo dos que nos cercam. No primeiro caso, é permanecer direitinho, dentro da tradição e ser elogiado como sendo piedoso. Isto é farisaísmo bem organizado e extremamente anticristão. Somente é cristão quem vive no sentido e espírito de Cristo. Quem imita a Cristo e tem, por assim dizer, a insolência de querer levar a cruz de Cristo, quando não consegue levar a sua própria, ainda não entendeu, ao meu ver, nem mesmo o ABC da mensagem cristã. 

domingo, 7 de dezembro de 2014

Sincronicidade e Inconsciente coletivo - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol II. 
Trecho de carta de Jung enviada ao Dr. John R. Smythies em 29/02/1952.

Dear Dr. Smythies,

[...] No meu ensaio sobre sincronicidade não me aventurei nesse tipo de especulação. Eu proponho um novo (na verdade, bem antigo) princípio de explicação, isto é, a sincronicidade, que é um termo novo para a já consagrada συμπάθεια ou correspondentia. Na verdade, eu me reporto a Leibniz, o último pensador medieval com um critério holístico. Ele explicou o fenômeno por meio de quatro princípios: espaço, tempo, causalidade e correspondência ("harmonia praestabilita"). O último princípio já foi abandonado há muito tempo (ainda que Shopenhauer o tenha reassumido, disfarçado como causalidade). Eu penso que não há explicação causal para os fenômenos-ψ. Conceitos como transferência de pensamentos, telepatia e clarividência nada significam. Como imaginar uma explicação causal para um caso de precognição?

Na minha opinião, os fenômenos-ψ são contingências além da mera probabilidade, "coincidências significativas" (sinngemässe Koinzidenzen) devido a uma condição psíquica especial, isto é, uma certa disposição emocional chamada interesse, expectativa, esperança, fé, etc., ou uma situação emocional objetiva como morte, doença, ou outras condições "numinosas". As emoções seguem um padrão instintivo, isto é, um arquétipo. Nos experimentos da PES [percepção extra sensorial], por exemplo, temos a situação do milagre. Parece que o caráter coletivo dos arquétipos se manifesta também em coincidências significativas, isto é, como se o arquétipo (ou inconsciente coletivo) não estivesse apenas dentro do indivíduo, mas também fora dele, ou seja, em seu meio ambiente, como se emissor e receptor estivessem no mesmo espaço psíquico ou no mesmo tempo (em casos de precognição). Como no mundo psíquico não há corpos movendo-se através do espaço, também não há tempo. O mundo arquetípico é "eterno", isto é, fora do tempo, e está em toda a parte, pois não existe espaço sob condições psíquicas, isto é, arquetípicas. Onde prevalece um arquétipo, podemos esperar fenômenos sincronísticos, isto é, correspondências acausais que constituem num ordenamento paralelo dos fatos no tempo. O ordenamento não é o efeito de uma causa. Ele simplesmente acontece como consequência do fato de a causalidade ser mera verdade estatística. Proponho, por isso, 4 princípios para a explicação da natureza:

sábado, 6 de dezembro de 2014

Desmistificando o Self e a Individuação - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II
Carta de C. G. Jung enviada à Armin Kesser em 18/06/1949.

Prezado senhor Kesser,

Queria manifestar-lhe o meu sincero agradecimento por sua gentil recensão de meu livro Symbolik des Geistes. O senhor conseguiu apresentar este material difícil de forma tal que o leitor pode ter uma visão real de  minhas idéias. 

Gostaria apenas de chamar sua atenção para uma pequena discrepância: na perspectiva psicológica, não se pode designar o conceito de si-mesmo como summum bonum [bem maior]. Eu nunca fiz isso em parte alguma. Seria uma contradictio in adiecto [contradição em termos], uma vez que, por definição, o si-mesmo representa uma união virtual de todos os opostos. Nem no sentido metafórico podemos designá-lo como summum bonum, pois ele não é um summum desideratum [algo altamente desejável], mas antes uma dira necessitas [extrema necessidade] que assim é caracterizado por todas as qualidades desagradáveis. A individuação é tanto fatalidade quanto realização. A psicologia do si-mesmo não é filosofia, mas um processo empiricamente constatável que, enquanto processo natural, poderia transcorrer harmoniosamente, se não recebesse uma conotação trágica no ser humano pela colisão com a consciência.

Com elevada consideração,
(C. G. Jung)

OBS: Colchetes pelo autor do Blog.

Fé como respeito pela verdade do mistério - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol II.
Trecho de carta de C. G. Jung enviada ao Padre Victor White em 21/05/1948.

Dear Victor,

[...] Seu ensaio levou-me a pensar: Será que eu tenho fé, uma fé ou nenhuma? Sempre fui incapaz de crer em alguma coisa, mas esforcei-me tanto que ao final não soube mais o que é a fé ou o que ela significa. Devo ao seu ensaio o fato de ter agora, aparentemente, uma resposta: Para mim, fé ou o equivalente de fé é o que eu chamaria de respeito. Eu tenho respeito pela verdade. Aparentemente este respeito se baseia num sentimento espontâneo de que existe algo que corresponde à verdade dogmática, algo que é indefinível em princípio. Tenho respeito por isso, mesmo que não o entenda. Mas posso dizer que o meu trabalho de toda uma vida é essencialmente uma tentativa de entender o que os outros aparentemente conseguem crer. Deve haver - assim concluo eu - uma força motivadora muito forte ligada à verdade cristã; caso contrário, não se explicaria o fato de ela me influenciar tanto. Mas note bem que meu respeito não é uma questão de decisão consciente, é um "dado" de natureza irracional. É o mais próximo que posso chegar daquilo que parece ser a "fé". Mas não há nada de especial nisso, pois sinto o mesmo tipo de respeito pelos ensinamentos básicos do budismo e pelas idéias fundamentais do taoísmo. No caso da verdade poder-se-ia explicar este respeito a priori por causa de minha formação cristã. Mas o mesmo não se pode dizer no caso do budismo, do taoísmo e de certos aspectos do islamismo [...].

Yours cordially,
C. G.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Sobre a psicoterapia - C. G. Jung

Texto retirado do livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II.
Trecho de carta de C. G. Jung ao Dr. Richard Otto Preiswerk de 21/04/1947.

Prezado primo,

[...] A psicoterapia é uma coisa extraordinária: não se pode aprender de cor algumas receitas e então aplicá-las de forma mais ou menos adequada, mas só se pode curar a partir de um ponto central; e este consiste em entender o paciente como um todo psicológico e tratá-lo como um ser humano, deixando de lado ao máximo todas as teorias e ouvir atentamente tudo o que o doente tem a dizer. Naturalmente, um diálogo profundo e minucioso com ele pode operar maravilhas. É imprescindível que o psicoterapeuta tenha certo autoconhecimento, pois quem não compreende a si mesmo também não vai compreender o outro, e também não poderá agir psicoterapeuticamente se antes não se tiver tratado com o mesmo remédio. Caso contrário nunca saberá o que está fazendo. Não se chega a lugar nenhum com alguns conhecimentos gerais e banais de que a neurose consiste numa sexualidade reprimida ou coisas assim. Uma pessoa como B. não entende nada de psicoterapia. O psicoterapeuta tem de ser um filósofo no sentido tradicional da palavra. A filosofia antiga era um modo de ver o mundo, assim como a conduta humana. 

Para as antigas autoridades da Igreja, o próprio cristianismo era uma espécie de sistema filosófico com um respectivo código de conduta. Havia sistemas filosóficos que visavam uma forma gratificante e feliz de vida. A psicoterapia significa algo assim. Ela deve levar em conta sempre a pessoa toda e não apenas órgãos, e por isso deve provir do médico como um todo. 

Acredito que se você se aprofundar de alguma forma na minha linha de pensamento, sem considerá-la uma espécie de novo evangelho, aos poucos se abrirá para você uma luz sobre a natureza da psicoterapia. [...]

Com os melhores votos e saudações cordiais de seu
(Carl)

O profeta, o poeta e o inconsciente coletivo - C. G. Jung

Texto retirado do Livro "Cartas de C. G. Jung" Vol. II. 
Carta de Jung enviada Monsieur le Pasteur Oliver Vuille em 22/02/1946.

Monsieur le Pasteur,

Sua pergunta toca numa questão difícil de resolver. Se Oséias fosse um homem de hoje, sua linguagem nos levaria a pensar numa relação intensa com sua mãe, pois em seu modo de se expressar predomina o sentimentalismo. Seria perigoso tirar esta conclusão do velho profeta, pois não há detalhes biográficos que confirmem isto. Temos apenas um texto, cuja peculiaridade de linguagem e conteúdo pode ser atribuída também a outras causas que não a personalidade específica do autor. Não se esqueça que esta personalidade fala como profeta. Isto nos proíbe fazer uso de uma psicologia personalista, porque a imaginação de um profeta não nasce tanto de seu inconsciente pessoal, mas do inconsciente coletivo, e só pode ser explicada por este último. As idéias de Oséias não podem ser derivadas de uma idiossincrasia pessoal, mas é preferível explicá-las pela imagem arquetípica do "casamento divino", uma imagem que ele certamente encontrou muitas vezes em seu ambiente pagão. Assim como não podemos entender as idéias principais de Fausto a partir da atitude (de Goethe) para com seus pais, também não podemos tirar conclusões semelhantes de Oséias, um homem que viveu em condições psíquicas tão diferentes e das quais pouco conhecimento temos. Por isso não ouso nenhuma interpretação personalista e sobretudo porque, segundo penso, a linguagem profética não provem da imaginação pessoal, mas de representações coletivas. Como na grande poesia, nas experiências religiosas e nas visões proféticas também aqui a causa originária está nas representações arquetípicas que pouco têm a ver com a disposição individual do profeta. A representação do relacionamento entre divindade e o povo como "casamento" explica-se satisfatoriamente pela atmosfera espiritual da época na Palestina e na Síria, onde a idéia do hierosgamos tinha papel relevante. [...]

Veuillez agréer, Monsieur le Pasteur, l´expression
des mes sentiments les meilleurs.
(C. G. Jung)

domingo, 30 de novembro de 2014

Tempos difíceis - Hesíodo

Hesíodo (Séc. VIII / VII A.C.) - Trabalhos e dias

Quem me dera não ter de viver entre os homens da quinta raça. Melhor seria se houvesse morrido antes ou nascido depois, porque agora é a raça de ferro. Nunca deixarão de trabalhar e de sofrer durante o dia, definhando à noite. Os deuses lhes darão pesadas angústias, e para eles os bens virão misturados aos males.

Mas Zeus também destruirá essa raça de homens mortais, assim que eles nasçam com têmporas grisalhas. Nem o pai concordará com o seus filhos, nem os filhos com o pai. Nem os hóspedes com o hospedeiro, nem os companheiros com o companheiro. Irmão não estimará irmão, como era antes, e os filhos desonrarão seus pais. Irão insultá-los, assim que ficarem velhos, repreendendo-os com palavras ásperas e cruéis. Eles não retribuirão aos pais idosos os alimentos recebidos e, sem se importarem com o olhar dos deuses, tomarão a lei nas mãos, e um saqueará a cidade do outro. Não obterá favor algum aquele que cumpre juramentos, nem o justo, nem o bom. Mais honras receberam o insensato e o malfeitor. A Justiça estará na força, e o respeito não existirá. O ignóbil lesará o mais nobre, proferindo palavras mentirosas e confirmando-as sob juramento. Todos os desafortunados homens serão acompanhados pela inveja maledicente que se alegra com o mal alheio, e pelos olhares maliciosos.

Então, Aidos e Nêmesis envolverão o belo corpo deles em alvos véus e partirão da terra de vastos caminhos. Irão juntar-se à estirpe dos imortais, no Olimpo, abandonando os homens e deixando apenas tristes sofrimentos para os mortais. E nenhuma defesa restará contra o mal.

domingo, 23 de novembro de 2014

Uma análise contemporânea do Herói na perspectiva junguiana - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Há uma série de visões diferentes sobre a questão do herói em psicologia analítica. Jung considerava o herói como sendo uma imagem da energia psíquica em seu movimento de regressão e progressão. Na perspectiva de Jung, o mitologema do herói seria fundamental para a compreensão de todo e qualquer confronto entre o eu e o inconsciente, não sendo possível localizar de forma exclusiva a constelação deste arquétipo em um único período cronológico da vida de um indivíduo, já que estaria relacionado aos processos de ampliação de consciência que ocorrem ao longo de toda a vida. Já Neumann, relaciona o herói ao desenvolvimento do complexo do eu e ao desenvolvimento da consciência na humanidade, partindo da perspectiva de que a ontogênese repete a filogênese, isto é, de que o desenvolvimento arquetipicamente determinado do indivíduo segue as mesmas trilhas que o desenvolvimento da consciência se deu na humanidade de modo geral. Talvez deva ser creditada à Neumann, graças ao livro "A criança", a relação feita entre os mitos de heróis e a passagem da adolescência à idade adulta. Outros autores pós junguianos seguiram esta mesma linha de raciocínio ao associarem o herói com o masculino imaturo, como Robert Moore e David Gillette. Hillman, finalmente, problematizou a questão do herói, e através de sua análise, o destronou do status que goza na contemporaneidade. Em psicologia arquetípica, falar em heroico é quase o mesmo que dizer conquista à força. A abordagem de Hillman, que traz a bela imagem do cultivo da alma como se fosse um cuidado paciente de um jardim, passou a considerar o heroico quase como algo antinatural e prejudicial ao desenvolvimento saudável. Como se fosse um ímpeto colonizador que não estaria de acordo com a atitude paciente e delicada que temos que ter para o cultivo da alma. O herói em Hillman cai de sua posição semidivina para ser identificado com o ego usurpador da multiplicidade arquetípica da alma. 

O herói contemporâneo, retratado de tantas formas no cinema e na literatura, parece de fato ser como o herói egóico de Hillman. Mas é importante notarmos que o mitologema do herói foi alterado de forma considerável em nosso imaginário contemporâneo, e o motivo para esta alteração é exatamente o ideal individualista, materialista e imperialista do século XXI, a hybris de nosso zeitgeist. O que então mudou nas estórias de heróis da atualidade? Pode parecer um pequeno detalhe, mas no fundo faz toda a diferença. A anomalia do herói contemporâneo é não necessitar de ajuda divina ou sobrenatural. Trata-se de alguém que abraça uma causa coletiva e resolve por conta própria, sem ajuda de ninguém, mas através de seus próprios méritos; assim como Édipo fez quando derrotou a Esfinge. Os heróis da atualidade são individualistas, aclamados pelo coletivo (celebridades), colonizadores que conquistam a “rosa da imortalidade” através da força bruta. Um retrato de uma cultura inflada em que o homem pretende usurpar o trono do deus que está morto, como Nietzsche anunciou. Este herói é um ideal coletivo do indivíduo perfeitamente realizado em nossa sociedade; ideal esse buscado pelas individualidades em uma corrida insana onde as pessoas se atropelam em um frenesi infantil, e que no fundo parecem ter como intento ser plenamente amadas e aceitas. E sem percebermos, somos impelidos a sermos aquilo que não somos. Tendo isso em vista, a única conclusão que posso chegar é que sem os aspetos transpessoais, sejam divindades ou animais  falantes (psicopompos, guias da alma), o herói contemporâneo acabou se transformando em anti-herói; pois ao invés de ser conduzido a ser quem realmente é, acaba sendo conduzido a ser quem não é. 

Posicionamento do sistema Conselhos de Psicologia para a questão da Psicologia, Religião e Espiritualidade

POSICIONAMENTO DO SISTEMA CONSELHOS DE PSICOLOGIA PARA A QUESTÃO DA PSICOLOGIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE

(GT NACIONAL – PSICOLOGIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE)

I. No momento histórico vivido pelo país, a Psicologia brasileira – ciência e profissão - vem a público apresentar seu posicionamento frente a uma das temáticas mais relevantes para a manutenção das instituições democráticas que garantem o estado de direito, conforme prevê o Artigo 5º da Constituição Federal: a laicidade do Estado e a liberdade religiosa.

II. A laicidade do Estado deve ser entendida como princípio pétreo, jamais pode ser colocada em questão, pois é sob essa base, segura e inquestionável, que se assenta a igualdade de direitos aos diversos segmentos da população brasileira, cuja extraordinária diversidade cultural e religiosa, uma das maiores do planeta, constitui um formidável potencial para resolução de inúmeros problemas da sociedade contemporânea.

III. O Estado Brasileiro, entretanto, não nasceu laico. Durante séculos o país viveu sob a égide de uma religião, o que determinou a interferência do dogma religioso na política do Estado. Durante esse período ocorreram perseguições religiosas e muitas arbitrariedades foram cometidas. Com a República o país tornou-se oficialmente laico e, com a Constituição de 1988, esse fato foi reafirmado de forma representativa pela população brasileira, conquistando total legitimidade. Portanto, entendemos ser legítimo afirmar que a laicidade do Estado configura-se como um princípio pétreo, inquestionável, que expressa o anseio da população brasileira.

IV. Afirmar que o Estado é laico não implica alegar que o povo deva ser desprovido de espiritualidade e da prática religiosa. No Brasil, como se sabe, o povo experimenta forte sentimento de religiosidade, expresso por meio de múltiplas formas de adesão religiosa, dadas as suas raízes indígenas, europeias e africanas, a cujas determinações culturais e religiosas se associaram outras, advindas do continente asiático. São exatamente os princípios constitucionalmente assegurados que permitiram a ampliação das denominações religiosas, hoje presentes na cultura nacional, e também concederam aos cidadãos brasileiros o direito de declararem-se não adeptos de qualquer religião. Afirma-se, portanto, e, antes de tudo, o “direito à liberdade de consciência e de crença”.

sábado, 22 de novembro de 2014

Histórias de vida ou Vida de narrativas - Milson Santos

Texto de Milson Santos
Contato: mds1000@ig.com.br

Algumas construções Pós Junguianas subvertem a compreensão da história de vida na formação dos Sintomas para uma leitura Arquetípica da personalidade. Relativiza-se, portanto, a pesquisa do passado para se compreender o hoje e aposta-se nos Deuses para compreender a Psique. Vale lembrar que Jung, por exemplo, optava por consagrar a infância e as relações parentais a devida importância. Há diferença teórica e prática entre o "método Hillmaniano" e o "método dialético em Jung".

Em minha clínica observo que as influências familiares da infância tendem a marcar a Psique com alto impacto. Nesse sentido sou mais "Junguiano" que "Hillmaniano". Ponho em cheque o aforisma: não importa tanto o que fizeram com você. Claro que importa!!! Não se trata de vitimizar o Analisando, trata-se de ir onde o Sintoma nos convoca: para alguns o mergulho na infância oferece a possibilidade de transformação, para outros: fuga histérica. Cada caso é um caso, a arte da Análise consiste em ir onde o Sintoma nos convoca e não onde a teoria manda.

Jung deu o devido valor a Freud, é um erro crasso opor a proposta Junguiana a Freudiana. Aliás, em muitas obras, Jung alude ao método Freudiano como o mais indicado para muitos casos. Claro que no decorrer de sua extensa obra, Jung vai se afastando do modelo Freudiano, contudo, vejo pontos de contato importante entre as teorias. 

Uma boa Anamnese é reveladora. As vezes falta um tanto de objetividade aos teóricos das ficções do Inconsciente. Anotações literais podem oferecer rico material para a compreensão do Sintoma. Será que a recusa a quaisquer modelos que "beirem" a medicina clássica não revela uma tola vaidade e esconde uma fantasia de inflação profissional? Será que o apego aos Arquétipos não pode ser mera defesa erudita para evitar lidar com o Aqui-e-agora? Estamos lidando com a Psique ou priorizando status Psíquicos? 

Assevera o dito popular: Nem tanto céu, nem tanto terra . Nem tanto Arquétipo nem tanto passado.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O Numinoso - Rudolf Otto


Texto retirado do livro "O Sagrado" de Rudolf Otto

Este será, então, nosso intento no tocante à peculiar categoria do sagrado. Detectar e reconhecer algo como sendo "sagrado" é, em primeiro lugar, uma avaliação peculiar que, nesta forma, ocorre somente no campo religioso. Embora também tanja outras áreas, por exemplo, a ética, não é daí que provém a categoria do sagrado. Ela apresenta um elemento ou "momento" bem específico, que foge ao acesso racional no sentido acima utilizado, sendo algo árreton ["impronunciável], um ineffabile ["indizível"] na medida em que foge totalmente à apreensão conceitual.

1. Essa afirmação seria liminarmente falsa se o sagrado tivesse o sentido utilizado em certo linguajar filosófico e geralmente também no teológico. Acontece que nos habituamos a usar "sagrado" num sentido totalmente derivado, que não é o original. Geralmente o entendemos como atributo absolutamente moral, como perfeitamente bom. Kant, por exemplo, chama de vontade santa a vontade impelida pelo dever e que, sem titubear, obedece à lei moral. Só que isso seria simplesmente a vontade moral perfeita. Nesse sentido também se fala de dever "sagrado" ou da "santa" lei, mesmo quando o que se quer dizer não é nada mais do que sua necessidade prática, seu caráter normativo geral. Só que esse uso do termo heilig [sagrado ou santo] não é rigoroso. Embora o termo abranja tudo isso, nossa sensação a seu respeito subentende claramente algo mais, que precisamos especificar agora. Na verdade, o termo heilig e seus equivalentes linguísticos semítico, latino, grego e em outras línguas antigas inicialmente designava apenas esse algo mais, não implicando de forma alguma o aspecto moral, pelo menos não num primeiro momento e nunca de modo exclusivo. Como para nós hoje santidade sempre tem também a conotação moral, será conveniente, ao tratarmos aquele componente especial e peculiar, inventar um termo específico para o mesmo, pelo menos para uso provisório em nossa investigação, termo esse que então designará o sagrado descontado do seu aspecto moral e - acrescentamos logo - descontado, sobretudo, do seu aspecto racional. 

domingo, 16 de novembro de 2014

Psicose e psicologia analítica: de C. G. Jung à Nise da Silveira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A esquizofrenia, anteriormente denominada dementia praecox, teve importância fundamental para que Jung desenvolvesse a psicologia analítica. De acordo com Walter Boechat (2009), “toda teoria psicológica é formulada a partir de um alicerce psicopatológico” (p. 30) e “a esquizofrenia vem a ser a psicopatologia que proporciona o fundamento teórico para a psicologia analítica” (p.31). Os principais conceitos formulados por Jung foram desenvolvidos através de suas observações com pacientes esquizofrênicos. Neste artigo vamos abordar a importância da psicose para o desenvolvimento da psicologia analítica assim como o entendimento teórico que Jung formulou sobre a psicose até chegarmos nas intervenções terapêuticas pioneiras desenvolvidas pela Dra. Nise da Silveira.

No inicio de sua carreira como psiquiatra, Jung trabalhou no Hospital Burghölzli na Suíça, ao lado do renomado Eugen Bleuler. Foram as idéias desenvolvidas por Bleuler, nesta época, que possibilitaram a substituição do conceito de dementia praecox pelo conceito de esquizofrenia. Segundo Boechat (op. cit), o trabalho desenvolvido por Jung no Hospital Burghölzli foi fundamental para que chegasse à ideia da presença de mitologemas (núcleos temáticos universais), através da observação dos delírios e alucinações de seus pacientes. Esses mitologemas apontariam para uma provável origem comum para os, atualmente denominados, sintomas positivos da esquizofrenia. Isso possibilitou que Jung formulasse a hipótese do inconsciente coletivo. O próprio Jung (2007. OC 5) em um de seus livros de grande importância histórica, por ser considerado o marco de sua ruptura com Freud, intitulado atualmente como “Símbolos da transformação”, descreve a alucinação de um de seus pacientes: “O doente vê no sol um membro ereto. Quando balança a cabeça para um e outro lado, o pênis solar também oscila numa e noutra direção, e daí se origina o vento” (p. 89. §151). Tal descrição aparentou não possuir nenhum sentido mais profundo para o jovem psiquiatra naquele momento. Anos mais tarde, quando um texto referente às visões da liturgia de Mitra foi traduzido do grego, Jung observou que a alucinação desse paciente era extraordinariamente semelhante ao que estava descrito no antigo texto. Esse fato foi especialmente importante para que formulasse o conceito de arquétipos, definindo-os como uma “predisposição funcional para produzir idéias iguais ou semelhantes” (p. 91. §154). O paciente que relatou tal alucinação não conhecia o idioma grego e na ocasião em que a relatou, o texto ainda não havia sido traduzido. Esse fato excluía a possível hipótese de que o paciente tinha conhecimento prévio sobre o texto e, quando relatou sua alucinação estava apenas descrevendo algo que já conhecia ou que se trataria de um caso de criptomnésia. Embora esse caso tenha tido importância especial para Jung, foi somente após uma série de outras observações de ocorrências de mitologemas em mitos, contos de fada, sonhos, delírios e fantasias, que Jung chegou a formulação da teoria do inconsciente coletivo e dos arquétipos.

Boechat (op. cit) comenta que Jung, assim como Bleuler, não se contentava com o ponto de vista psiquiátrico, dominante em sua época, que lidava com os sintomas psicóticos apenas sob uma perspectiva descritiva e diagnóstica. Ao invés disso, procurava “sempre o conteúdo simbólico das esquizofrenias” (p. 31). Esse posicionamento possibilitou que Jung fosse além dos preceitos psiquiátricos de sua época (que permanecem atuais) e formulasse uma teoria que não concebia os delírios e alucinações como desprovidos de significação. Para Jung, os sintomas psicóticos manifestam-se de forma totalmente irracional, de impossível compreensão a não ser que se parta de um pressuposto simbólico. Isso significa que exprimem um sentido mais profundo, embora impossível de ser apreendido pela consciência de forma imediata, o que os tornam aparentemente sem sentido.

sábado, 15 de novembro de 2014

Mortos vivos: imaginação, sonho e psicologia junguiana - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

Os mortos vivos são habitantes do imaginário humano pelo menos desde a Mesopotâmia, a primeira civilização da humanidade. Tabuletas de argila encontradas entre o Tigre e o Eufrates (rios no território do atual Iraque) falavam de rituais para apaziguar as “almas” dos antepassados, que negligenciados após a morte (sem os ritos apropriados), seriam responsáveis por uma série de moléstias, incluindo aquelas que hoje consideramos psicológicas. Ao longo do tempo, outros ritos fúnebres foram criados levando em conta a possibilidade dos mortos retornarem à vida, como os sepultamentos em caixões de madeira lacrados, por exemplo. Mortos vivos habitaram também o imaginário da Europa medieval. Diversas foram as formas que assumiram, desde mortos que levantavam de seus túmulos até as Sucumbos, demônios femininos que seduziam as pessoas em seus sonhos para roubar-lhes energia vital. As Sucumbos talvez tenham sido o protótipo do vampiro contemporâneo, que ao invés de sêmen, sugam sangue como fonte de energia vital, mas que ainda são associados à sexualidade. O Drácula de Bram Stoker foi um clássico do fim do século XIX que alcançou em cheio a alma do mundo ocidental, tendo se tornado referência para os vampiros que seriam criados desde então, até os dias de hoje. 

O fato é que os mortos vivos são personagens do imaginário humano pelo menos desde os primórdios da civilização. Independente da cultura, do tempo e da religião, havia o morto vivo habitante do mundo imaginal, em uma série de formas diferentes e muitas vezes relacionados a alguma forma de maldição familiar. No cenário contemporâneo, filmes, séries de televisão, animações e livros sobre zumbis e vampiros fazem muito sucesso, isto é, continuam nos fascinando. O Drácula ganhou inúmeras versões na literatura e no cinema. Os zumbis, criaturas que se levantam da morte com um apetite insaciável pela carne dos vivos, também capturaram o imaginário contemporâneo. Talvez o mais importante filme sobre essas criaturas tenha sido “A noite dos mortos vivos” (Night of the living dead) de 1968, e desde então o interesse sobre os mortos que se levantam do túmulo só parece aumentar. O sucesso da série de televisão “The walking dead” mostra que os mortos vivos continuam ocupando lugar de honra em nosso imaginário até os dias de hoje, pelo menos desde a origem da civilização e possivelmente bem antes disso.

Assim como ocorre com qualquer imagem arquetípica que “habita” o mundo imaginal, os mortos vivos são continuamente reatualizados através da imaginação criativa, das estórias de horror e de nossos sonhos. É inclusive bastante comum que o mitologema do morto que retorna à vida para sugar a energia vital ressurja nos sonhos contemporâneos, fato esse que reforça a tese de sua importância significativa para a alma. Há aparições oníricas que reúnem os elementos presentes na literatura e no cinema contemporâneos e outras formas menos reconhecíveis, mas sempre arrumam alguma forma imagética para afirmarem que existem de fato. Segue um sonho (publicado com autorização) de um jovem de vinte e cinco anos que ilustra uma aparição de mortos vivos:


quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O aborto como imagem arquetípica e a clínica junguiana - Roberto Gambini

Texto retirado do artigo Não nascer: alguns traços da imagem arquetípica do aborto de Roberto Gambini; publicado originalmente na Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, nº3. 1985.

[...] não está escrito no livro do destino que tudo o que germina nascerá. No reino da psique não há garantias, só possibilidades. O que começa poderá nascer ou não, independente de nossa vontade - a não ser que de fato apliquemos um abortivo, porque assim quisemos. Um grão cai na areia e seca; outro brota sobre espinhos que o engolem; um terceiro cai na terra e cresce. O exagerado valor que consagramos à idéia de achievement e produtividade nos fazem encarar a vida "certa" como uma desenfreada arrancada para o sucesso. Criar, produzir, frutificar, disseminar, expandir - no fundo, uma fantasia de poder e de plenitude material para compensar o tremendo vácuo espiritual de nossa era. Desse perspectiva, não criar é o maior dos infortúnios; abortar, no corpo ou na psique, o maior sinal de derrota. "Crescei e multiplicai-vos", fora de seu contexto simbólico e religioso, transformou-se num chavão de multiplicação anárquica e desregulada, da superprodução inflacionária, da superpopulação da Terra. Não é à toa que a doença de nossa época é o câncer, a multiplicação letal.

Há um tempo de nascer e um tempo de esperar. Num tudo que reluz é ouro, e nem tudo que se inicia precisa ir até o fim só porque foi iniciado. A natureza cria e destrói, faz e desfaz, inicia e interrompe e seus desígnios estão além de nosso alcance. Não há porque ser sentimental: nem todo aborto é uma tragédia. Do mesmo modo, nem tudo o que fracassa em elevar-se à percepção consciente precisa ser visto como perda inestimável. Quando natural, o aborto compensa a cupidez do ego que acredita tudo poder controlar e possuir, e o que se gostaria que nascesse não nasce. Nosso útero não prende. Nosso solo não vitaliza. Há algo que não vai. Não é hora. Não é o caso. Não estamos em sintonia com a fonte elementar. Não adianta insistir. Não somos nós que controlamos as portas de entrada e saída desta vida. 

Mas isso não basta. Às vezes algo novo deve imperiosamente nascer e somos nós mesmos o agente abortífero. Aí o caso é outro. Porque aquilo que não nasce, quando o momento era chegado, torna-se destrutivo e passa a corroer por dentro. Mas o que é isso, o que é esse momento crucial?

No plano psíquico, que é o que nos interessa aqui, um nascimento se refere sempre à integração de um conteúdo inconsciente pela consciência, que em consequência se amplia. Esse conteúdo tenta emergir uma, duas vezes e aborta. A consciência não consegue abrir lugar para ele, suas malhas estão muito apertadas. Pode ocorrer que um sonho indique que isso ocorreu, e a pessoa, se estiver em análise, ficará desesperada, ou perguntará - "mas o que devo fazer?" e nada adianta. Não adianta o analisando assumir uma atitude de pseudo-transformação, fabricando gestos e ideologias com a intenção de convencer a si mesmo e aos demais que livrou-se desse ou daquele problema. Na verdade, nada genuíno nasceu. O que aconteceu foi um aborto, ou vários, e o que fazer? Deve o analista sentir-se fracassado e o analisando perder a esperança? O processo instintivo e natural deve ser respeitado e compreendido mesmo quando leva a um aborto desse tipo. O desenvolvimento da psique não é uma corrida de Fórmula I ou uma pesca milagrosa em que todos levam um prêmio. É uma pesca, sim, mas paciente, humilde, religiosa. Como diziam os velhos alquimistas, é uma obra que dará um fruto Deo concedente, se Deus quiser. Mas há um momento em que esse peixe, esse conteúdo até então desconhecido do inconsciente que subir à tona e está dotado de toda a energia necessária para tanto, suficiente trabalho já foi feito e no entanto a consciência se recusa a recebê-lo. Esse aborto custa caro, porque pode ser que a chance não se apresente pela segunda vez. É preciso portanto saber julgar e diferenciar. Nem tudo precisa nascer; mas quando chega o momento do Advento reclamado pela alma, é melhor ter pronta a manjedoura. 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Tarô: Senda da Individuação - Paulo Urban

Texto de Paulo Urban, publicado na Revista Planeta, edição especial nº 337-A, outubro/2000
Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento.
É autor do livro “O que é Tarô”, da coleção Primeiros Passos, ed. Brasiliense.

Observação do autor do Blog: É raro encontrar alguém em quem sinto confiança quando o assunto diz respeito a Tarô. Paulo Urban, sem dúvida nenhuma, é uma dessas poucas pessoas.


Não é por acaso que os 22 Arcanos Maiores do Tarô acham-se numerados. Suas cartas, perfiladas tal qual os capítulos de uma novela, retratam uma história verdadeira, a do ser humano em sua senda iniciática, repleta de experiências transcendentes e desafios que se nos apresentam como oportunidades para o autoconhecimento.

Desde a Antigüidade, espalhados por distintas culturas, incontáveis são os mitos que abordam a imagem do homem colocado à prova, chamado a enfrentar perigos e resolver enigmas, a ultrapassar seus próprios limites e escolher o rumo certo nas encruzilhadas do caminho.

Foi o médico psiquiatra suíço Carl G. Jung (1875-1961), inicialmente admirador de Freud, e que desenvolveu sua própria teoria para a compreensão do psiquismo, a psicologia analítica, quem cunhou o nome de “individuação” para esse processo ininterrupto de aprimoramento pessoal, destinado a orientar a personalidade para algo maior e transcendente, a cumprir psicologicamente o mesmo papel a que se destinavam os rituais de iniciação dos povos antigos.

A questão fulcral da psicologia junguiana esbarra num dos principais mistérios da existência, o da consciência em busca da fonte primordial, inconsciente em sua essência, de onde se desprendeu originalmente. Para Jung, o ego poderia ser comparado ao inconsciente na mesma proporção que uma ilha estaria para o oceano à sua volta. Outra analogia seria a do planeta Terra, pequenina morada da civilização humana (a consciência), comparado ao Universo desconhecido, no qual estamos inseridos (o inconsciente).

Jung chamou de ego o núcleo da consciência, sendo a individuação toda a busca empreendida por esta diminuta instância em direção ao presumido centro da totalidade psíquica, a abranger obviamente o mundo inconsciente. Ao ponto de fusão entre consciência e inconsciente, núcleo da personalidade total e ao mesmo tempo passagem para uma dimensão transcendente e coletiva, espécie de porta para o psiquismo universal, Jung denominou de Selbst, em inglês self, que em português melhor ainda se traduz por “si mesmo”.


sábado, 1 de novembro de 2014

A questão da interpretação das imagens na psicologia junguiana - Luís Paulo B. Lopes


Texto de Luís Paulo B. Lopes

As imagens têm importância central para a psicologia junguiana, seriam elas a linguagem que a alma se utiliza para falar de si própria. Jung dá grande importância aos mitos, contos de fada, sonhos e fantasias, por considerar que estas imagens trazem consigo elementos arquetípicos que constituem os fundamentos da alma. James Hillman também nos fala da importância da utilização de imagens metafóricas para pensarmos a alma, pois segundo afirma, os conceitos psicológicos tendem, devido à própria natureza unilateral da linguagem conceitual, a literalizar teorias e engessar nosso entendimento sobre nós mesmos. Jung sempre salientou este risco quando repetidas vezes alertou para a tendência a hipostasiarmos teorias, isto é, a confundirmos nossos conceitos sobre a alma com a alma em si mesma. Para Hillman, é a linguagem metafórica que nos previne de confundir o mapa com o território, pois a ambiguidade implícita da metáfora impede a unilateralidade conceitual e a consequente literalização. 

Hillman considera a metáfora como a coniunctio falada, isto é, engloba os opostos em uma unidade paradoxal. Este pensamento está de acordo com o que pensava Jung quando afirmava que o símbolo é a união dos opostos, isto é, irremediavelmente ambíguo, e que a postura simbólica é o que permite a abertura do indivíduo ao mistério no trato com a imagem. Ao contrário da postura simbólica, a postura semiótica, segundo Jung seria responsável por definir correspondências estáticas entre imagens e significados definidos, algo extremamente semelhante ao problema da literalização proposto por Hillman. O cuidado em discernir postura simbólica de postura semiótica, por Jung, nos adverte de que mesmo quando utilizamos uma linguagem imagética, não estamos necessariamente trabalhando de maneira simbólica. E que nossa postura diante das imagens é de fundamental importância para que mantenhamos a ambiguidade do símbolo viva, e assim a possibilidade de abertura para o desconhecido. 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O Saci Pererê nas regiões do Brasil do Século XIX - João Barbosa Rodrigues

Em homenagem ao dia do Saci (31 de outubro) trago esta obra prima de João Barbosa Rodrigues contando sobre o Saci do século XIX de Norte à Sul do país. O autor descreve as diferenças  regionais desta personagem mítica tão presente no imaginário nacional. Este texto constitui joia raríssima para o estudo da alma brasileira.

Texto retirado do livro Poranduba amazonense de João Barbosa Rodrigues. Este livro foi publicado em 1890. Nesta época, as regras ortográficas da língua portuguesa eram diferentes das atuais. Tomei a liberdade de corrigir palavras do texto original para o português contemporâneo. Além disso, acrescentei entre colchetes, significados de algumas palavras pouco utilizadas na atualidade, que são restritas à regiões específicas do país ou que estão no idioma Tupi. 


O civilizado, que muitas vezes não entende a pronúncia do sertanejo, que é o mais perseguido por ele [pelo Saci] em suas viagens, tem-lhe alterado o nome; já o fez Çacy-pererê. Saperê, Sererê, Sareré, Siriri, Matim-taperê, e até já lhe deu um nome português, o de Matinta-Pereira, que mais tarde talvez, terá o sobrenome da Silva ou da Matta.

Para conseguir seus fins, e fazer suas proezas, sem ser visto, quase sempre vive o Çacy [Saci] ou Maty metamorfoseado em pássaro, que se denuncia pelo canto, cujas notas melancólicas, ora graves ora agudas, iludem o caminhante que não pode assim descobrir-lhe o pouso, porque, quando procura vê-lo pelas notas graves, que parecem indicar-lhe estar o Çacy [Saci] perto, ouve as agudas, que o fazem já longe. E assim iludido pelo canto se perde, leva descaminho nunca vendo o animal.

Quando no Norte, os tapuyos, ouvem o canto de Maty-taperê, e no Sul, os roceiros ou os Kaipiras, o do Kaapora ou do Çacy-taperê; que o civilizado toma por Alma de caboclo, os velhos o esconjuram [lhe rogam pragas]; as crianças unidas conchegam-se ao colo das mães; estas, arrepiadas, olham para os pais, que tremem, mas não negam o fumo que espalham pelas cercas dos quintaes e pelas portas para que o Çacy [Saci] se cale, e se retire, levando com que matar o vício de cachimbar.

Quando não se apresenta aos viandantes sob a forma de pássaro, reveste-se da forma humana, e só (no Sul) ou acompanhado de sua mãe (Pará e Maranhão) percorre as ruas, entra pelos roçados, vai às casas de farinha; penetra nas senzalas; aterroriza os passageiros; rouba a mandioca; furta farinha e quebra os bejus no forno, proezas em que é destro no Rio de Janeiro.

No Amazonas e Pará é um kurumi [curumim] de uma perna só, de cabelos vermelhos, os quais a civilização transformou em barrete [tipo de chapéu] vermelho (Pará) sempre acompanhado de uma velha tapuya [índios que não falam o idioma Tupi. Em Tupi significa "inimigo", "forasteiro"] ou preta (tatámanha [mãe de fogo em Tupi]) vestida em andrajos que pela calada da noite, e mesmo de dia assovia dizendo: Maty-taperê!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

A psicologia junguiana e o resgate da alma brasileira - Luís Paulo B. Lopes

Texto de Luís Paulo B. Lopes

A alma brasileira não pode ser adequadamente circunscrita de forma exclusiva pela mitologia grega e pelo mito judaico-cristão. Somos um povo miscigenado, com fortes influências da cultura africana e indígena. Nossa cultura foi formada, literalmente pelo choque entre essas culturas. Apesar de nossa riqueza étnica e cultural, a história de dominação da cultura europeia tendeu a excluir nossas influências africanas e indígenas do debate acadêmico. Historicamente, os mitos, ritos e costumes destas culturas foram estudados por nossos etnólogos e antropólogos como culturas exóticas, mas somente raramente como constituintes fundamentais de nossa cultura, sempre presentes no aqui e agora. A psicologia junguiana no nacional tendeu, ao longo dos poucos anos em que floresceu no Brasil, a reproduzir as mesmas temáticas abordadas pelo pensamento europeu. Do ponto de vista arquetípico, as produções acadêmicas nacionais tendem a utilizar majoritariamente a mitologia grega e o mito judaico-cristão em suas amplificações. Não quero dizer que estes mitos não exerçam grande importância em nossa constituição cultural e psíquica, mas por outro lado é importante assumir que abordar cultura tão rica e complexa como a brasileira a partir desta perspectiva unilateral significa ignorar ampla parcela de nossa cultura; é ignorar ampla parcela de nossa alma. 

Somente recentemente a psicologia junguiana brasileira parece ter se ocupado de forma séria com a constituição complexa de nossa cultura, levando em conta as diversas influências étnicas e culturais que nos constituem enquanto brasileiros. Um exemplo do esforço nacional pelo resgate da alma brasileira foi materializado no primeiro volume da coleção “alma brasileira” publicado em 2014 pelas editoras Mauad X e Bapera. Esta coleção foi idealizada e planejada, segundo Oliveira (2014), a partir do “Colóquio: Psicomitologia Junguiana e Mitos Brasileiros” em novembro de 2011. O objetivo da coleção é introduzir de forma definitiva os mitos constituintes de nossa cultura, ainda vivos no imaginário brasileiro, no estudo de nossa alma sob a perspectiva da psicologia junguiana. Leonardo Boff em seu prefácio para o primeiro volume desta coleção, nos fala sobre a importância desta empreitada. Afirma ele que “diversa é a composição étnica, diferentes são as regiões geográficas do país e vigora um rico sincretismo em curso que, seguramente, vai moldar toda a cultura brasileira futura. É o que faz o Brasil complexo e desafiador” (BOFF in OLIVEIRA, p. 7, 2014). Este desafio a que se refere é fundamental para a compreensão e o resgate de nossa identidade cultural, que há séculos sofre de um abafamento dominador da cultura europeia e tende a desqualificar e excluir a África e a América pré-colombiana de sua reflexão sobre si própria. Resgatar nossas raízes enquanto cultura, isto é, aqueles nossos aspectos que foram negligenciados, equivale a reconstruir nosso futuro; reconstruir nossa identidade cultural. Ainda segundo Boff, “uma nação revela já maturidade quando começa a pensar a si mesma com um olhar próprio, mesmo quando se serve de um arsenal teórico vindo de fora mas filtrado pela nossa singularidade como povo” (Ibid: 7). Me parece que não só a psicologia junguiana brasileira, mas nossa sociedade de forma mais ampla, começa a atingir tal grau de maturidade que permite pensar sobre si mesma a partir da própria singularidade enquanto povo. Faz-se necessário que a psicologia analítica, sem negligenciar suas raízes europeias, comece também a valorizar a totalidade da cultura brasileira a fim de se aproximar de um entendimento mais original e radical sobre a alma brasileira; e consequentemente ajude na construção de uma identidade cultural fundamentada em suas próprias raízes, em sua totalidade. 

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Entrevista de Joseph Campbell à Revista The New Story (1985)


A presente entrevista foi retirada de um blog na internet (link no final desta postagem). Foi traduzido e editado pelos responsáveis pelo blog.

"Muitos de vocês já devem conhecer a célebre entrevista de Joseph Campbell para Bill Moyers em O Poder do Mito, não é mesmo? Pois bem, aqui lhes trago uma outra entrevista, concedida a Tom Collins e publicada na revista The New Storyem 1985, nos EUA. Se trata, é claro, de um entrevista muito mais curta do que a citada acima, mas exatamente por isso acaba sendo um excelente resumo do pensamento de Campbell acerca da mitologia, das religiões, dos rituais e dos rumos da sociedade moderna, em sua trágica carência de mitos"

A entrevista foi traduzida do inglês por Gabriel Fernandes Bonfim, revisada por Rafael Arrais.

Joseph Campbell talvez seja o acadêmico mais proeminente no estudo da mitologia. Entre os seus diversos livros podemos destacar O herói de mil faces, As máscaras de Deus (série) e o célebre O poder do mito. O entrevistador, Tom Collins, é um escritor e editor de Los Angeles, que já trabalhou com Steven Spielberg.


1. A importância dos mitos

[Tom] O que os mitos fazem por nós? Por que a mitologia é tão importante?

[Joseph] Ela lhe põe em contato com um plano de referência que vai além da sua mente e adentra profundamente o seu próprio ser, até as vísceras. O mistério definitivo do ser e do não ser transcende todas as categorias de pensamento e conhecimento. Ainda assim, isto que transcende toda a linguagem é a própria essência do seu ser; então você está descansando sobre ela, e sabe disso.

A função dos símbolos da mitologia é nos levar a uma espécie de insight, “Aha! Sim, eu sei o que é isto, isto sou eu mesmo”. É disto que se trata a mitologia, e através dessa vivência você se sente em contato com o centro do seu próprio ser, cada vez mais, e todo o tempo. E tudo o que você faz dali em diante pode ser relacionado com tal grau de verdade. No entanto, falar sobre isso como “a verdade” por ser um pouco enganoso, pois quando pensamos na “verdade”, pensamos em algo que pode ser conceitualizado. E tal vivência vai além disso.